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RelatóRio 2009




 violência contra
os povos indígenas
     no Brasil
ISSN 1984-7645




   violência contra os
povos indígenas no Brasil
       Relatório 2009




            APOIO
Este relatório é uma publicação do
                       Conselho Indigenista missionário (Cimi),
                         organismo vinculado à Conferência
                       Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).




                                    PRESIDENTE
                                Dom Erwin Kräutler

                                     ENDEREçO
                       SDS - Ed. Venâncio III, sala 309-314
                         CEP 70.393-902 - Brasília-DF
                              Tel: (61) 2106-1650
                              Fax: (61) 2106-1651
                               www.cimi.org.br


     Violência contra os povos indígenas no Brasil – 2009
                                  ISSN 1984-7645

                           COORDENAçãO DA PESquISA
           Lúcia Helena Rangel – Doutora em Antropologia – PuC-SP

                     PESquISA E LEVANTAmENTO DE DADOS
              Regionais do Cimi e Setor de documentação do Cimi

                     ORgANIzAçãO DAS TABELAS DE DADOS
Eduardo Holanda, Leda Bosi, marline Dassoler Buzatto e marluce Ângelo da Silva

                         REVISãO DAS TABELAS DE DADOS
    Denise da Veiga Alves, Lúcia Helena Rangel e marline Dassoler Buzatto

                               SELEçãO DE ImAgENS
                Aida Cruz, Cleymenne Cerqueira e maíra Heinen

                                       EDIçãO
                          Setor de Comunicação do Cimi

                                      REVISãO
                                      Leda Bosi

                                   DIAgRAmAçãO
                                 Licurgo S. Botelho



                                     Capa
                 Protesto contra despejos – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi
              Criminalização de lideranças indígenas – Foto: J. Ripper
Exército invade áreas indígenas para obras da transposição – Foto: Equipe Cimi Nordeste

                                 Contracapa
          Desmatamento em área indígena – Foto: Equipe itinerante Cimi Norte I
     Sepultamento de indígena vítima de assassinato – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi
            Barraca queimada por pistoleiros – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi
HoMenageM



        Foto: Arquivo Cimi




                             Rolindo Vera e Genivaldo Vera

                             “Os dois desapareceram. Não viverão nas terras que queriam viver, não vão mais
                             fazer roça para alimentar seus filhos, não vão mais educar suas crianças, não vão
                             mais dançar quaxiré, (ritual de festa Guarani) não vão fazer novas rezas, não vão ser
                             tamõi (avós). Não verão a lei se cumprir, porque ela demorou muito, muito mais que
                             a bala que tirou a vida deles.

                             Guarani é como uma flor que brota da terra e desabrocha perfumando a natureza.
                             E às vezes desaparece deixando um aroma no ar. É como as aves que vêm e
                             desaparecem. Mas o nosso sentimento e a lágrima que cai no chão fortalecem o
                             nosso espírito e voltam a brilhar em nosso meio.

                             Mas até quando vamos ver as flores pisadas, as aves mortas e o sangue derramado?
                             Até quando vamos ter que esperar para poder entrar em nosso chão? Até quando
                             continuaremos a ser expulsos, confinados, discriminados, assassinados?”



                             Documento de professores indígenas do Mato Grosso do Sul para a Conferência de Educação
                             Indígena, em homenagem aos professores Rolindo Vera e Genivaldo Vera, primos, que
                             desapareceram durante um violento despejo da terra Ypo’i, no dia 30 de outubro de 2009. Em
                             7 de novembro o corpo de Genivaldo foi encontrado, ele foi assassinado. Rolindo continua
                             desaparecido.
Foto: Cristiano Navarro




                           “... nós índios, que nunca batemos em ninguém, nunca matamos
                            ninguém, nunca espancamos, estamos todos indiciados porque
                          estamos lutando pelas nossas terras, porque não queremos morrer
                           de fome. nós estamos ocupando nosso território tradicional e por
                           ocupar nosso território tradicional estamos sendo perseguidos...”
                                          Cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva)
sUMÁrio

   Paz e terra para os povos indígenas ....................................................................................................................... 7
            Dom Erwin Kräutler – Bispo da Prelazia do Xingu (PA) e Presidente do Cimi

   apresentação
   O Governo Federal e os povos indígenas: a omissão como opção política ........................................ 9
            Roberto Antonio Liebgott – Vice-Presidente do Cimi

   introdução
   Violência sistemática contra os povos indígenas ........................................................................................... 13
            Lúcia Helena Rangel – Antropóloga / PUC/SP

   artigos
   Racismo institucional em Mato Grosso do Sul ................................................................................................ 16
            Iara Tatiana Bonin – Doutora em Educação pela UFRGS e Prof. do PPG da Univ. Luterana do Brasil
   A Violência dos Grandes Projetos .......................................................................................................................... 21
            Saulo Ferreira Feitosa – Secretário-Adjunto do Cimi
   Criminalização dos Povos Indígenas: a nova face do velho colonialismo ......................................... 23
            Egon D. Heck – Regional Cimi MS
   Repercussões da realidade agressiva contra os Povos Indígenas no Poder Judiciário ............. 26
            Paulo machado guimarães – Advogado e Assessor Jurídico do Cimi

   capítulo i – violência contra o patrimônio
            Omissão e morosidade na regularização de terras ................................................................................... 29
            Conflitos relativos a direitos territoriais ...................................................................................................... 41
            Invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio ............ 44

   capítulo ii – violência contra a pessoa praticada por particulares e agentes do poder público
            Assassinato ................................................................................................................................................59
            Tentativa de assassinato ............................................................................................................................70
            Homicídio culposo ......................................................................................................................................73
            Ameaça de morte .......................................................................................................................................76
            Ameaças várias ..........................................................................................................................................79
            Lesões corporais dolosas ...........................................................................................................................83
            Abuso de poder ..........................................................................................................................................86
            Racismo e discriminação étnico-cultural ....................................................................................................89

   capítulo iii – violências provocadas por omissão do poder público
            Suicídio e tentativa de suicídio .................................................................................................................. 95
            Desassistência na área de saúde ............................................................................................................. 99
            morte por desassistência à saúde ........................................................................................................... 107
            mortalidade na infância ........................................................................................................................... 111
            Desnutrição ............................................................................................................................................. 115
            Disseminação de bebida alcoólica e outras drogas ................................................................................ 116
            Desassistência na área de educação escolar indígena .......................................................................... 118
            Desassistência geral ............................................................................................................................... 121

   capítulo iv – violência contra povos indígenas isolados e de pouco contato
            Povos isolados – refugiados do “desenvolvimento” na Amazônia ...........................................................129
            grupos de indígenas isolados no mato grosso .......................................................................................132

   tabelas resumo da violência contra os povos indígenas ......................................................................... 143


                                                                                                        Conselho Indigenista missionário - Cimi                      5
Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi




Comunidade Apika’y (MS) após incêndio criminoso em outubro de 2009
Paz e terra para os povos indígenas
          M       ais uma vez, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a
                  público denunciar as mais variadas formas de violências praticadas
          contra os povos indígenas no Brasil. Desta vez, com dados relativos ao ano
          de 2009.
                  Este Relatório de Violência, que foi lançado pela primeira vez
          em 1993 constitui-se numa importante ferramenta de luta que o Cimi
          utiliza para mostrar à sociedade e ao governo brasileiro a violação dos
          direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal e pela Convenção
          169 da OIT.
                 Como poderão observar, no ano de 2009, mais uma vez, houve
          uma grande concentração de casos de violência no Mato Grosso do Sul,
          especialmente relacionados ao povo Guarani Kaiowá. O Estado brasileiro,
          por suas ações e omissões, é o grande responsável por este ininterrupto
          e avassalador processo de violência que assola este povo indígena. A
          não demarcação de suas terras tradicionais permanece sendo o principal
          elemento causador dessa lamentável realidade.
                 Faz-se necessário ressaltar também as irresponsáveis investidas do
          governo brasileiro na implantação de grandes projetos de infra-estrutura,
          causadores de profundos impactos na vida de dezenas de povos indígenas
          no Brasil. Dentre estes destaco a Hidrelétrica de Belo Monte, obra faraô-
          nica e demoníaca, que trará conseqüências imprevisíveis e irreversíveis
          para milhares de pessoas, indígenas e não-indígenas, da região de Alta-
          mira, no estado do Pará.
                  Para os povos indígenas, a terra é fonte e mãe da vida, o espaço
          vital, a garantia da existência e reprodução enquanto coletividades
          específicas e diferenciadas. A defesa do território equivale à defesa da
          sobrevivência material e espiritual. Por tudo isso, os indígenas reivindicam
          que seja reconhecido e respeitado o direito às suas terras tradicionais.
          Lamentavelmente, em 2009, na grande maioria dos estados brasileiros,
          ocorreram conflitos decorrentes da invasão de terras indígenas por parte
          de diversos grupos econômicos, de modo especial usineiros, madeireiros
          e empresas de energia elétrica.
                 Impulsionado pelo Evangelho de Jesus Cristo, o Cimi, também por
          meio deste relatório, visa continuar contribuindo para que haja “Paz e
          Terra para os Povos Indígenas” no Brasil.

                                                                       Dom Erwin Kräutler
                                            Bispo da Prelazia do Xingu e Presidente do Cimi



                                               Conselho Indigenista missionário - Cimi   7
a realidade dos povos indígenas precisa ser
                               exposta e enfrentada, e os responsáveis pelas
                                     agressões denunciados e punidos.


Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi




Despejo da comunidade Laranjeira Nhanderu (MS) depois que a Funai descumpriu ordem judicial de finalizar os estudos de demarcação
Apresentação


O Governo Federal e os povos indígenas:
a omissão como opção política
                                                                                       Roberto Antonio Liebgott
                                                                                           Vice-Presidente do Cimi



               O     relatório de Violência contra os povos indígenas, elaborado pelo Conselho Indigenista
                     Missionário (Cimi) no ano de 2009, denuncia a omissão como opção política do Governo
               Federal em relação aos povos indígenas.
                        A não demarcação de terras, as perseguições, as prisões arbitrárias, os espancamentos,
               os assassinatos, os ataques contra acampamentos indígenas, a queima de casas e barracos de
               lona, a execução de lideranças, a invasão de terras, o desmatamento, a devastação territorial,
               os ataques aos indígenas em situação de isolamento e risco, as agressões policiais, o trabalho
               escravo, a destruição de plantações e de animais domésticos, a desnutrição, as mortes por
               desnutrição, os confinamentos, o descumprimento de ordens judiciais, as ameaças de morte,
               as torturas, as epidemias, a mortalidade infantil, a omissão nas áreas da segurança pública,
               saúde e educação indígena. Enfim, o desrespeito aos preceitos constitucionais e às convenções
               internacionais.
                       Essas foram, mais uma vez, as graves violências praticadas por particulares e por agentes
               do poder público contra os povos indígenas do Brasil registradas pelo Cimi e ocorridas no ano de
               2009.Tais práticas não podem ficar silenciadas e muito menos serem tratadas com naturalidade,
               como quer o Governo Federal ao defender que “para haver desenvolvimento são inevitáveis
               alguns impactos e problemas”.
                       Com o propósito de evitar que as agressões contra a vida e contra a natureza sejam
               tratadas como partes do pacote desenvolvimentista do governo, o Cimi as explicita e as denuncia
               para a população, aos organismos de defesa dos direitos humanos, aos legisladores, aos juízes, às
               autoridades. É convicção do Cimi, como organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos
               do Brasil, que assumiu o radical compromisso com a causa indígena, de que toda esta realidade
               precisa ser exposta e enfrentada, e os responsáveis pelas agressões sejam denunciados.
                       Os dados apresentados no relatório merecem cuidadosa análise, de modo especial pelos
               poderes públicos. É deles a competência para executar as ações e serviços aos povos indígenas,
               assegurar o cumprimento das normas constitucionais e legislar, tendo como base a Constituição
               Federal. Desde o dia 5 de outubro de 1988, data de sua promulgação, a Constituição brasileira
               determina garantias e direitos aos povos indígenas, no seu Capítulo VIII -“Dos Índios”, artigos
               231 e 232.
                        Quem são os responsáveis pelas violências contra indígenas, lideranças e comunidades?
               A leitura dos dados aponta que os responsáveis são particulares e agentes do poder público.
                       Entre os particulares destacam-se latifundiários, políticos, usineiros, empreiteiros,
               funcionários de fazendas, agentes de segurança, pistoleiros. As motivações que levam estes
               segmentos a atuarem ostensivamente contra os povos indígenas são: a questão fundiária, e a
               exploração das terras e de seus recursos ambientais, minerais e hídricos.




                                                                    Conselho Indigenista missionário - Cimi   9
Quanto aos agentes do poder público, os dados remetem a uma análise mais apurada           a Funai se
acerca das formas, métodos e motivos que levam às práticas de violações de direitos à vida,        mostra incapaz
as normas legais e as obrigações acerca das ações dos servidores públicos.
                                                                                                   de cumprir com
        No âmbito federal, os responsáveis pela execução da política indigenista são               suas obrigações.
efetivamente três: Ministério da Justiça, que atribui à Funai as demandas relativas à terra,
demarcações, fiscalizações e proteção; Ministério da Saúde, responsável pela assistência aos       isso ocorre
povos indígenas e que tem como executora das ações a Funasa; e Ministério da Educação              porque este órgão
que em articulação com estados e municípios prestam serviço em educação escolar.                   é susceptível
        Quanto às demarcações, a Funai se mostra incapaz de cumprir com suas obrigações.           às pressões
Isso ocorre porque este órgão é susceptível às pressões de políticos e de segmentos                de políticos e
econômicos contrários aos direitos indígenas. Evidencia-se esta situação em Mato Grosso do
Sul onde a Funai não consegue sequer dar condições de trabalho para que os grupos técnicos
                                                                                                   de segmentos
procedam aos estudos de identificação e delimitação de terras. Ao contrário, o presidente do       econômicos
órgão indigenista, Márcio Meira, submeteu os grupos de trabalho a interesses do governo do         contrários aos
estado e aos fazendeiros que na maioria são invasores de terras indígenas.
                                                                                                   direitos indígenas.
        O Cimi publica também, neste relatório, a Listagem Geral das Terras Indígenas sem
Providência, baseada em dados das equipes regionais do Cimi e da própria Funai. São 324
terras sem nenhuma providência, sequer para dar início ao processo de demarcação; o
que mostra o tamanho da inoperância do órgão oficial e a dimensão dos problemas que
enfrentam os povos indígenas na conquista de seu direito básico, qual seja, a terra que lhes
garante a vida e integridade de sua existência.
         O Ministério da Justiça, instância responsável por decidir se uma terra pode ou não ser
declarada como sendo de ocupação tradicional indígena, declarou apenas 11 terras indígenas
ao longo do ano de 2009. Por outro lado, permitiu, entre outros casos, que agentes da Polícia
Federal invadissem a terra do Povo Tupinambá, na Bahia, e lá praticassem as mais variadas
formas de violências: destruição do patrimônio indígena, espancamentos, ameaças, prisões
ilegais e até tortura. Assim como a Funai é negligente, omissa e subserviente, o Ministério da
Justiça, no que tange aos direitos indígenas, procede da mesma forma.
       As informações relativas à omissão e inoperância da Funasa são corriqueiras. Houve
a promessa de que seria criada uma Secretaria de Atenção à Saúde Indígena no decorrer
do ano de 2009. O governo gerou expectativas, mas nada foi concretizado. Enquanto isso
houve descaso no atendimento à saúde e o alastramento de doenças como tuberculose,
desnutrição, dengue, gripe suína, malária e hepatite A, B, e C em muitas comunidades
indígenas.
        Já a Presidência da República, que através do presidente deveria homologar as
terras que passaram pelos estudos antropológicos e foram declaradas como sendo de
ocupação indígena, homologou apenas 9 terras em 2009, das 59 que aguardam por este
ato administrativo. Para piorar a situação de paralisia, deste total 11 terras foram declaradas
pelos governos anteriores. Ou seja, estão aguardando a assinatura do presidente desde que
tomou posse em 1º de janeiro de 2003. Para piorar a situação de paralisia em 2009, o ministro
Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) quase imediatamente suspendeu a
homologação da terra indígena Arroio-Korá, situada em Mato Grosso do Sul, e parcialmente
a homologação da terra Anaro, em Roraima.
       O pronunciamento do presidente da República durante a homologação daquelas
nove terras indígenas é sintomático e mostra que o Poder Executivo opta por ceder às
pressões políticas e não dar andamento célere às demarcações de terras indígenas: “(...)



  10     Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
Aty Guasu do povo Guarani Kaiowá na aldeia Cerro Marangatu (MS) – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi


                              essa demarcação das terras indígenas que nós fizemos agora... Eu não ia fazer agora, Marcio
                              [Meira, presidente da Funai, presente na platéia], porque você me deve uma, que eu vou
                              cobrar só no ano que vem, agora. Estamos com espírito de Natal, vamos deixar para lá”.
                                      Os dados de violência comprovam a omissão e a complacência do poder público
                              com as agressões praticadas por terceiros contra indivíduos, comunidades e povos. Evidencia
                              também os interesses em disputa e a tendência, de modo especial do Poder Executivo, de
                              seguir pelo caminho traçado pelas elites econômicas, que buscam, em nosso país, extrair
                              as riquezas existentes nas terras, no subsolo, nas águas e matas. O Programa de Aceleração
                              do Crescimento (PAC) é a expressão máxima das escolhas e prioridades do atual governo.
                              Governar aliando-se às empreiteiras, estruturadas na sua maioria durante o período da
                              ditadura militar e que têm larga experiência em ações exploratórias e de devastação das
     as violências            riquezas ambientais e de vidas humanas.
           contra o
                                        O governo também se abraça aos latifundiários, usineiros, agentes do agronegócio,
   patrimônio dos             produtores da soja transgênica, aos barrageiros, aos grupos que almejam a exploração da
povos indígenas,              energia hidráulica e das águas e nelas buscam a obtenção de incalculáveis lucros financeiros.
      demonstram              Por isso a liberação das obras do complexo hidrelétrico do rio Madeira, em Rondônia, sem levar
     a opção pelo             em conta os impactos aos povos indígenas da região, inclusive alguns povos isolados, e por
desenvolvimento               isso a liberação das obras da transposição do rio São Francisco. São ambos empreendimentos
                              que pretendem consolidar o projeto de privatização das águas no Brasil.
a qualquer custo,
    sem que seus                      As violências contra os povos indígenas, especialmente aquelas praticadas contra o
    direitos sejam            seu patrimônio, demonstram que as terras destes povos estão no centro das disputas políticas
                              e econômicas. Demonstram também a opção pelo desenvolvimento a qualquer custo, sem
 respeitados e/ou
                              que os direitos indígenas sejam respeitados e/ou garantidos. Os grandes empreendimentos
       garantidos.            vão sendo implantados sem que as comunidades indígenas tenham ao menos o direito de
                              serem ouvidas como evidenciaram a ausência de consultas junto aos 31 povos indígenas
                              impactados pela transposição do rio São Francisco e a farsa das audiências públicas para a
                              hidrelétrica de Belo Monte. Os “entraves humanos” ou como gosta de enfatizar o presidente
                              da República, “os penduricalhos”, não podem ser obstáculos à consolidação do lucro de um
                              lado e à hegemonia política de outro.  u


                                                                                          Conselho Indigenista missionário - Cimi   11
a violência tem sido uma constante, que,
                            mesmo sendo absorvida na vida cotidiana dos
                            povos indígenas, não pode ser banalizada, nem
                                     encarada como normalidade.

Foto: Sean Hawkey/ACT




As comunidades indígenas, apesar de toda pressão contrária, continuam sua luta, recriando o sentido da vida, intimamente ligado à terra
introdução


Violência contra os povos indígenas:
constantes e recorrências
                                                                            Lúcia Helena Rangel
                                                                            Antropóloga/ PUC SP




             N     o ano de 2009 o Cimi registrou inúmeras ocorrências de violências e viola-
                   ções de direitos contra pessoas e comunidades indígenas em todo o terri-
             tório brasileiro. A metodologia empregada é a mesma dos relatórios anteriores,
             tomando-se como fonte principal o noticiário da imprensa através de jornais,
             sítios virtuais, veículos radiofônicos e o registro sistemático efetuado pelas
             equipes de base que compõem os Regionais da instituição. Infelizmente não
             se pode constatar uma tendência de diminuição dos conflitos e situações de
             violência, mesmo que alguns números sejam menores do que os registrados em
             anos anteriores. As oscilações numéricas não permitem constatações precisas,
             pois nos últimos anos aumentam e diminuem os tipos de ocorrências, em dife-
             rentes regiões, referentes aos indicadores analisados: violências e violações
             contra o patrimônio indígena, contra a pessoa, as omissões do poder público
             e a situação dos povos que vivem em isolamento ou com pouco contato com
             a sociedade regional. Nesse relatório não estão esgotadas todas as ocorrências
             reais; o que temos aqui representa apenas fatores parciais, cujos registros foram
             possíveis de obter na pesquisa realizada durante todo o ano.
                   A cada ano a publicação do Relatório de Violência Contra os Povos Indí-
             genas no Brasil causa uma espécie de angústia porque se apresenta desatua-
             lizado imediatamente; enquanto a equipe elabora a edição, as ocorrências de
             violência não cessam. Temos a impressão de que o que estamos para publicar é
             menos importante do que está ocorrendo na realidade dos povos abatidos pela
             violência, arbitrariedade, expropriação e toda sorte de violações. Essa sensação,
             decorrente da metodologia, não se restringe a desatualização dos dados o que
             é próprio de qualquer pesquisa empírica; afinal, a vida real não se suspende,
             aguardando a verificação dos dados coletados, sua sistematização, análise e
             editoração. Ela decorre dos fatos e episódios em curso, tão brutais quanto os
             do ano anterior, vertiginosamente, absorvendo as preocupações do Cimi e de
             todos aqueles envolvidos na luta pelos direitos indígenas que continuam sendo
             violados.
                   A violência tem sido uma constante, que, mesmo sendo absorvida na vida
             cotidiana dos povos indígenas, não pode ser banalizada, nem encarada como
             normalidade. Na vida cotidiana as comunidades não se deixam abater, repro-
             duzem-se nos limites de suas possibilidades, criam estratégias de sobrevivência
             e recriam assiduamente o sentido da vida. Por isso mesmo, este relatório tem
             sempre o objetivo de colaborar para a construção da paz, zelar por direitos e pela
             dignidade humana e alertar para a necessidade da concretização de uma política
             indigenista justa que aponte o rumo da construção de uma ética de respeito à
             diversidade cultural, social, econômica, política e ambiental.



                                                   Conselho Indigenista missionário - Cimi   13
Foto: Egon Heck




              Violência por agentes do Estado: em muitas ocorrências a PF intimida e agride comunidades indígenas em vez de protegê-las



                    Por isso, é sempre importante esclarecer que o ponto de vista adotado é o da
              violência empreendida pelo poder público e por particulares contra os povos indígenas.
              Os estudos de violência apontaram uma modificação de paradigma nos anos de 1970, a
              partir da mudança dos focos de violência que passaram a emanar dos redutos civis, cujos
              sujeitos principais estavam localizados nos guetos empobrecidos das cidades, organizando-
              se em quadrilhas criminosas de alcance local, nacional e internacional. A violência temida
              é aquela empreendida pelo civil que rouba, seqüestra, estupra e sevicia, portanto, aquela
              que é praticada pelo bandido que ameaça a sociedade e o Estado. Para essa violência
              reclama-se a segurança pública e a proteção do Estado. Mas aqui, não falamos desse tipo
              de violência, mesmo que em algumas situações ela atinja o interior de comunidades indí-
              genas que vivem as pressões próprias do confinamento em territórios exíguos, onde as
              disputas por espaço e usos da territorialidade criam as bases de competições, conflitos e
              levam a vícios degradantes.
                    Neste sentido, a situação do povo Guarani Kaiowá revela-se emblemática dessa situ-
              ação, dada a recorrência do confinamento, das ações contrárias à demarcação de territórios


                  14   Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
para abrigar as comunidades, do racismo que os atinge brutalmente, do descaso e da bruta-
                    lidade, tal como é analisada no artigo de Iara Bonin.
                          As violências contra as pessoas revelam números preocupantes de assassinatos e tenta-
                    tivas de assassinatos, ameaças de todo tipo, perseguições, tortura e abusos que são voltadas
                    especialmente para as lideranças indígenas que atuam bravamente na luta por demarcação
                    de terras. Os casos referentes aos Tupinambá, no sul da Bahia e aos Xukuru, em Pernam-
                    buco, mostram como essas lideranças têm sido perseguidas e incriminadas ao longo de anos,
                    levando as comunidades a viverem sob pressão física e psicológica no seu cotidiano. Nessas
                    situações ocorre uma inversão de posição: o atacado, que seria a vítima, é transformado em
                    réu. Em muitos casos, em diversas regiões do Brasil, aqueles que vão às delegacias de polícia
                    denunciar ataques são presos ou saem de lá como acusados. Os casos mais dramáticos de
                    criminalização de lideranças indígenas são tratados no artigo de Egon Heck. E uma análise
                    detalhada dos processos judiciais e de algumas arbitrariedades é abordada por Paulo Guima-
  as agressões      rães em seu artigo.
                          As agressões ao patrimônio indígena continuam a evidenciar o quanto as terras indí-
  ao patrimônio     genas são vulneráveis às ações de madeireiros, mineradores e a todos que cobiçam seus
         indígena   recursos e riquezas.
    continuam a           Os conflitos pela posse de terras se proliferam e se reproduzem incessantemente, tal
                    como ocorre em Roraima, na Terra Indígena Serra da Moça, invadida por ocupantes não
    evidenciar o
                    indígenas após a solução de desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Mesmo que
quanto as terras    o governo federal tenha cedido parte das terras da união para o estado de Roraima, os incon-
  indígenas são     formados teimam em não reconhecer o direito dos indígenas sobre suas terras e transferem
     vulneráveis    o conflito para uma área ainda desprotegida pela demarcação. Queimaram escola e posto de
                    saúde que atendem a comunidade.
    às ações de           Além dos incêndios que vitimaram diversas comunidades, além das invasões de
    madeireiros,    grileiros, agricultores, pecuaristas e madeireiros os povos indígenas são ameaçados pelas
    mineradores     grandes obras de infra-estrutura como as de transposição do rio São Francisco e as diversas
                    construções de hidroelétricas. Destacam-se os conflitos gerados pela UHE Belo Monte, no rio
   e a todos que
                    Xingu, cujos estudos e projetos não respeitam o direito de consulta prévia e bem informada
  cobiçam seus      das comunidades atingidas e, muito menos, seu direito de manter a integridade de seus terri-
      recursos e    tórios e a preservação dos recursos naturais. Os efeitos e ameaças que os grandes projetos
        riquezas.   provocam às terras e comunidades indígenas são tratados no artigo de Saulo Feitosa.
                          Os registros relativos às omissões do poder público contribuem para constatar o quanto
                    ainda as comunidades indígenas se ressentem com as precariedades no atendimento à saúde
                    e no funcionamento da educação escolar. As crianças são afetadas pela desnutrição e o índice
                    de mortalidade na infância para a população indígena continua a ser o mais alto do Brasil.
                          Este relatório dedica especial atenção aos povos indígenas que vivem em situação de
                    isolamento ou de pouco contato com a sociedade nacional. São ameaçados por epidemias, por
                    desequilíbrios ambientais, pela exploração ilegal de recursos naturais e, muito especialmente,
                    pelos grandes projetos de infraestrutura realizados pelos governos federal e estaduais. Também
                    são cercados pelos empreendimentos privados do agronegócio e da exploração mineral, assim
                    como pela ação ilegal de madeireiros e garimpeiros. Um balanço dessa situação é apresentado
                    pelos artigos de Francisco Loebens e de Lourdes Christ no capítulo IV.
                          Entre a proteção da floresta que abriga os povos livres, exercitando autonomia na
                    reprodução de sua vida social e o extremo confinamento, os povos indígenas enfrentam
                    situações muito diversas, o que exigiria dos poderes constituídos muita flexibilidade para
                    instituir uma política que contemple a variação e muito respeito pelos direitos indígenas.
                    Esse seria o exemplo que a sociedade necessita para que se possa minimizar o racismo,
                    manifestado em muitas situações, como se pode ver neste relatório, na extrema manifestação
                    expressa na placa de alerta na rodovia: “Atenção - indígenas na pista a 300 metros”! u


                                                                      Conselho Indigenista missionário - Cimi   15
artigo


Racismoo institucional em Mato Grosso do Sul
Mais uma vez estado lidera o ranking de violências contra os povos indígenas



                                          Iara Tatiana Bonin                                  de terras. Num contexto
       Doutora em Educação pela UFRGS e Professora do               Foi a partir das          como este, a presença
                 PPG da Universidade Luterana do Brasil              estratégias de           indígena é rechaçada,
                                                                   confinamento da            e seu inegável direito a

A     violência sistemática praticada contra os Guarani-
      Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, registrada em
inúmeros casos que vieram a público nos últimos anos,
                                                                 população indígena,
                                                                      iniciadas nos
                                                                                              estas mesmas terras, hoje
                                                                                              ocupadas por latifún-
                                                                                              dios, é considerada uma
                                                                    anos 1920 e de
permite afirmar que neste estado se configura um tipo            contínuas invasões           grande ameaça ao modelo
de racismo institucional, materializado tanto em ações                                        de desenvolvimento em
                                                                  nas terras destes
de grupos civis, quanto em ações e omissões do poder                                          voga.
                                                                 povos, em décadas
público brasileiro.                                                                               Na base dos conflitos,
    Nesse relatório de violências organizado pelo
                                                                  seguintes, que se           portanto, está a posse da
Conselho Indigenista Missionário, relativo ao ano de              estabeleceram na            terra. Mas as múltiplas
2009, Mato Grosso do Sul lidera, mais uma vez, o ranking          região os grandes           formas de violência prati-
de agressões aos direitos indígenas e exibe um vergo-                proprietários e          cadas contra os povos
nhoso quadro de assassinatos, seqüestros, lesões corpo-            as empresas que            indígenas, e em espe-
rais, constrangimentos, ameaças várias, destruição de             hoje desenvolvem            cial contra os Guarani-
patrimônio, abusos de poder, desassistência, omissão do            monoculturas de            Kaiowá, deixam evidente
poder público, entre outras. O estado no qual vive uma            cana, de soja e de          que não se trata apenas
população indígena de mais de 53 mil pessoas, recusa-                                         de uma disputa de base
                                                                    outros produtos
se a assegurar os direitos constitucionais destes povos                                       econômica. Tais agres-
                                                                      destinados à
e, mais do que isso, coloca em prática uma contínua                                           sões têm por base uma
e inegável política de extermínio, que tem como força
                                                                       produção de            lógica racista, assentada
motriz os interesses econômicos e políticos vinculados               combustíveis.            na crença de que os povos
ao agronegócio.                                                                               indígenas são signos do
                                                               atraso, da inconstância, da falta de apego ao trabalho,
confronto além da posse de terra                               do primitivismo e, assim, sua presença seria um entrave
    Conforme têm demonstrado diferentes estudos                ao desenvolvimento regional e nacional. Por não se ajus-
acadêmicos desenvolvidos no Mato Grosso do Sul, o              tarem à racionalidade econômica neoliberal, por serem
estado conta com um vasto território e com uma expres-         distintos do ponto de vista étnico e por seguirem vivendo
siva presença indígena, historicamente vinculada a estas       de acordo com suas culturas e crenças, eles são conside-
terras. Os Guarani-Kaiowá constituem hoje a maior etnia        rados, naquele estado, um problema a ser resolvido ou
no país, e também aquela que sofre mais intensamente           um risco a ser controlado.
os efeitos de um modelo de ocupação e de exploração
das terras para o agronegócio. Foi a partir das estraté-       o racismo do estado
gias de confinamento da população indígena, iniciadas             Michel Foucault, um importante filósofo francês que
nos anos 1920 e de contínuas invasões nas terras destes        discute as relações de poder e de saber que constitu-
povos, em décadas seguintes, que se estabeleceram na           íram a modernidade, afirma que algumas práticas, colo-
região os grandes proprietários e as empresas que hoje         cadas em curso para conter grupos sociais ou parcelas
desenvolvem monoculturas de cana, de soja e de outros          da população, podem constituir o que chama de racismo
produtos destinados à produção de combustíveis. Tais           de Estado. Para ele, o racismo consiste na introdução de
atividades possuem amplo e irrestrito apoio governa-           uma separação entre aqueles que devem viver e os que
mental e somente funcionam na base da concentração             devem morrer, tomando por base hierarquias biológicas


 16     Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
A expansão do agronegócio se deu em grande parte avançando sobre as terras indígenas – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi


e sociais a partir das quais se estabelecem categorias de               então, o fim do risco e a vitória de um modelo de ordem
superioridade e inferioridade, definindo, assim, a supre-               econômica que é, por conseguinte, também um modelo
macia de um grupo em relação ao outro. É a cisão em                     de ordem social. Uma política de extermínio, numa pers-
âmbito biológico que está na base de certas divisões                    pectiva racista, é consentida quando o objetivo é deixar
que se estabelecem para assegurar privilégios de base                   a vida em geral mais saudável, mais pura ou mais susten-
econômica, social e cultural. E nas explicações biológicas              tável. Mas tudo isso implica na definição do que social-
se naturalizam certas características dos sujeitos e dos                mente se considera válido, saudável, puro, sustentável e
grupos, em especial as supostas carências que estes                     decorre de jogos de força, e, portanto, do que não é “da
teriam em relação aos demais. Nesta linha de raciocínio,                ordem natural e progressiva das coisas”.
justifica-se a suposição de que aos índios faltaria civili-
dade, vontade, racionalidade, inteligência, apego ao                    as múltiplas formas de tirar a vida
trabalho etc. Em outras palavras, é o raciocínio racista                    E, para Foucault, tirar a vida não se expressa apenas
que torna possível descrever esses sujeitos como infe-                  no assassinato direto, mas também – e principalmente
riores, responsabilizando-                                              – no fato de expor à morte, de multiplicar os riscos para
os pela situação de miséria            No contexto                      estes grupos “inferiores” ou, ainda, em estratégias de
e desprezo que vivenciam                 político e                     morte política, materializadas em práticas de expulsão,
na atualidade.                                                          de rejeição, de confinamento, de difamação, de assédio
                                        econômico
    As funções do racismo                                               moral.
                                      brasileiro e, em
são, de acordo com o filó-                                                  No contexto político e econômico brasileiro e, em
sofo, as de fragmentar,                particular, do                   particular, do estado de Mato Grosso do Sul, pode-se
legitimar o domínio de               estado de Mato                     dizer que o foco é fazer viver os grandes proprietários,
certos grupos e a subordi-            Grosso do Sul,                    o grande capital e deixar morrer os povos indígenas.
nação dos demais, intro-               pode-se dizer                    A separação entre quem deve viver e quem deve ser
duzir censuras e, ao mesmo          que o foco é fazer                  expulso e rejeitado, tem por base um modelo de desen-
tempo, estabelecer as bases          viver os grandes                   volvimento autoritário e unilateral, que justifica as polí-
que autorizam a morte de              proprietários, o                  ticas estaduais e federais de incentivo, de financiamento,
alguns para garantir a vida          grande capital e                   de manutenção de estruturas que protegem os grandes
de outros. A morte, física                                              proprietários e os investidores, enquanto oferece aos
                                     deixar morrer os
ou política, daqueles que                                               povos indígenas a omissão, a negligência ou as migalhas
                                     povos indígenas.
não se ajustam significaria,                                            de uma política assistencialista fragmentada e pontual.


                                                                                         Conselho Indigenista missionário - Cimi   17
As violências praticadas de maneira escancarada,                Do mesmo modo, quando se defende que a solução
a omissão do poder público, a morosidade nos proce-             para a problemática vivida pelos Guarani Kaiowá passa
dimentos de demarcação das terras, tudo isso é parte            prioritariamente pela intensificação de políticas assis-
de uma política que promove de forma deliberada a               tenciais ou, ainda, por ações que permitam integrá-los
expulsão ou a morte da população indígena, ainda mais           como mão-de-obra ao mercado de trabalho, também
indesejada quando todos os esforços nacionais se voltam         se pratica um tipo de discriminação de base cultural e
para a aceleração do crescimento econômico.                     política. Isso porque, assumindo um caminho mais fácil,
    Pode-se dizer, portanto, que articulada à disputa pela      tais afirmativas deixam de reconhecer a alteridade e a
terra há uma intensa disputa por projetos de vida, com          urgente necessidade de demarcação de terras, condição
recursos e forças desiguais. De um lado estão os povos          para assegurar a continuidade da vida e das formas
indígenas, que têm ao seu favor prerrogativas constitu-         próprias de organização dos povos indígenas.
cionais, mas para quem o estado recusa o direito efetivo
sobre as terras. Do outro lado o agronegócio, benefi-           discriminação e segregação social
ciado por incentivos oficiais, financiamentos e com forte           Tomando por base os dados deste relatório, apre-
aparato judicial à sua disposição, o que faz com que            sentado pelo Cimi, é possível verificar uma tendência
empresários como Luiz Guilherme Zancaner, proprie-              de intensificação da violência contra os povos indígenas
tário de três grandes usinas de álcool e açúcar, afirme         em Mato Grosso do Sul, expressa tanto pela quanti-
publicamente que nunca                                          dade, quanto pela brutalidade das agressões praticadas.
um governo fez tanto pelo                                       É necessário salientar que estes dados representam
agronegócio quanto o                 De um lado estão           apenas uma amostra do que ocorre efetivamente no
de Lula (entrevista publi-         os povos indígenas,          estado – aqui se expressa aquilo que, rompendo o
cada no jornal Valor, em              que têm ao seu            silêncio, chega aos jornais ou a alguns canais alternativos
05/04/2010).                        favor prerrogativas         de comunicação.
    O ato de deixar morrer            constitucionais,              Pois bem, entre os anos de 2005 e 2008, registrou-se
os povos indígenas, consi-           mas para quem o            o assassinato de 151 indígenas somente em Mato Grosso
derados, sob um prisma                                          do Sul. Em 2009 este estado continuou sendo o mais
                                      estado recusa o
racista, como improdutivos                                      violento da federação, ano em que foram praticados 33
                                   direito efetivo sobre
e descartáveis, é praticado                                     assassinatos de indígenas, o que corresponde a 53% das
pelo Estado brasileiro de           as terras. Do outro         ocorrências em todo o território nacional. Além disso,
muitas maneiras: através           lado o agronegócio,          foram registradas 9 tentativas de assassinato, 3 ameaças
de ações e omissões                   beneficiado por           de morte, 1 ameaça de várias ordens e 24 pessoas foram
que os expõem à morte,              incentivos oficiais,        vítimas de lesões corporais dolosas.
através da burocracia e da           financiamentos e               Os assassinatos praticados possuem agravantes como
morosidade que multiplica            com forte aparato          a prisão arbitrária, a tortura, o uso de meios cruéis, a
os riscos para a vida das               judicial à sua          impossibilidade de defesa das vítimas – e estas são as
pessoas, expressa em situ-               disposição.            expressões de um racismo institucional contra os povos
ações de confinamento                                           indígenas em Mato Grosso do Sul. É impossível imagi-
em terras ínfimas ou em                                         narmos que a lista de assassinatos, que se renova a cada
acampamentos provisórios, sem garantias mínimas de              ano, seja um mero reflexo de fatos isolados, ou que eles
segurança e de sobrevivência.                                   sejam apenas sintomas de um desvio na conduta de
    Em relação aos Guarani Kaiowá, pode-se dizer que o          alguns indivíduos. Esse tipo de violência está inegavel-
Estado também tem decretado um tipo de morte política,          mente relacionado às instituições sociais e às práticas
na medida em que não controla, não fiscaliza, não coíbe         contemporâneas de discriminação e segregação social
a violência praticada contra eles, de forma cada vez mais       protagonizadas, em grande medida, pelos próprios
incisiva e contundente. Também se exprime um tipo de            órgãos públicos – quando participam diretamente de
morte política quando os meios de comunicação noti-             ações de despejo, quando facilitam ou incitam inva-
ciam de forma banal as terríveis violências vivenciadas         sões de áreas indígenas, quando discriminam indígenas
pelos povos indígenas, quando os responsabiliza pelas           presos, que passam anos sem atenção jurídica adequada
agressões sofridas ou quando simplesmente encobre               e quando sequer asseguram o direito a um intérprete
tais notícias com um opaco véu de silêncio.                     quando vão a julgamento. Vale registrar aqui que Mato


  18     Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
Grosso do Sul é o estado da federação com maior contin-                                              distante 30 quilômetros
gente de indígenas em suas penitenciárias.                                  Os símbolos de           do local do acampamento.
                                                                           força e de poder          Já Rolindo continua desa-
Milícias armadas e encapuzados                                            utilizados – invadir       parecido até hoje e, além
    É também no estado de Mato Grosso do Sul que se                        as comunidades            da dor de não saber o que
têm manifestado as formas mais brutais de abordagem                         de madrugada,            ocorreu com ele, seus
e de constrangimento das famílias que vivem já em uma                      incendiar casas,          familiares ainda foram
situação de vulnerabilidade e de violência, habitando                      destruir objetos,         vítimas de discrimina-
barracos à beira de rodovias. Em 2009, quatro comuni-                                                ções, como fez o gover-
                                                                            matar animais,
dades indígenas foram atacadas por milícias armadas e,                                               nador do estado, André
                                                                          aprisionar, torturar,
em cada uma dessas agressões, registraram-se variadas                                                Puccinelli, ao levantar a
formas de assédio moral e de desrespeito aos direitos
                                                                          assassinar, circular       hipótese de que Rolindo
da pessoa.                                                                   com veículos            seria o responsável pela
    Em setembro daquele ano a comunidade Laranjeira                          em torno dos            morte de Genivaldo, e
Ñanderu, dos Guarani Kaiowá, foi atacada por um grupo                    acampamentos para           por isso estaria desapa-
de homens, encapuzados e armados, que os expulsou do                       amedrontar seus           recido.
lugar, ateando fogo em seus pertences e matando, inclu-                    moradores – são               Os símbolos de força
sive, os animais de criação. Passados somente quatro                     manifestações claras        e de poder utilizados são
dias, 10 homens atacaram a comunidade Guarani Kaiowá                      de um anseio pelo          manifestações claras de
Apyka’i, que vive em um acampamento às margens da                                                    um anseio pelo exter-
                                                                               extermínio.
BR-483. Na ocasião, um indígena de 62 anos foi baleado                                               mínio desta população:
e diversos barracos foram queimados.                                                                 invadir as comunidades
    Em outubro, algumas famílias Guarani Kaiowá reto-                 de madrugada, incendiar casas, destruir objetos, matar
maram uma parcela de suas terras tradicionais, ocupada                animais, aprisionar, torturar, assassinar, circular com
hoje pela fazenda Triunfo, no município de Paranhos.                  veículos em torno dos acampamentos para amedrontar
Novamente um grupo de homens, armados e encapu-                       seus moradores. A covardia é outra marca da agressão de
zados, entrou no acampamento, os agrediu violenta-                    que são vítimas os povos indígenas, e se manifesta espe-
mente e os expulsou da área. Dois jovens professores que              cialmente pelo uso de capuzes – signos de uma violência
também participaram da retomada – Genivaldo Vera e                    “sem rosto” ou, melhor dizendo, de uma violência que
Rolindo Vera – foram arrastados pelos cabelos e seqües-               esconde o rosto de todos aqueles que desejam o afas-
trados pelos agressores. O corpo de Genivaldo foi encon-              tamento, a retirada ou a morte de sujeitos vistos como
trado, alguns dias depois, com perfurações e marcas de                indesejáveis por razões econômicas, políticas, culturais
violência, preso a um galho de árvore, no córrego Ypoi,               ou raciais.




Jagunços atacaram de madrugada a aldeia Apyka’i incendiando casas e atirando contra os indígenas – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi



                                                                                       Conselho Indigenista missionário - Cimi    19
Além das agressões contra os Guarani Kaiowá, regis-         federação, uma silenciosa e contínua prática de geno-
tram-se ações violentas contra outros povos no estado,          cídio, previsto na Lei nº. 2889/56, que se aplica a todos
tal como ocorreu com os Terena, em novembro de 2009,            aqueles que, com a intenção de destruir, no todo ou
quando um grupo de fazendeiros acompanhados por                 em parte, grupos étnicos, raciais ou religiosos, matam
seguranças particulares armados despejou, sem ordem             pessoas pertencentes a estes grupos ou lhes causam
judicial, uma comunidade que havia retomado parte               lesões, ameaçando sua integridade física ou cultural. u
da terra Buriti, no município de Sidrolândia, identifi-
cada em 2001 como parte do território do povo Terena,
mas até hoje mantida nas mãos de fazendeiros. Após a
decisão oficial do Tribunal Regional Federal, 3ª. Região,
de que os Terena poderiam permanecer naquelas terras
até que a ação principal fosse julgada, os fazendeiros
decidiram agir por conta própria e puderam contar,
inclusive, com o apoio de cerca de 50 policiais militares
que participaram da ação ilegal de despejo. Neste caso,
em particular, os agentes do poder público cometeram
uma dupla ilegalidade: primeiro por não assegurarem a
posse e o usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre
suas terras tradicionais, conforme determina a Consti-
tuição e, segundo, por agirem em defesa de interesses
de terceiros, sem o amparo de uma determinação judi-
cial para realizar a retirada dos Terena da área por eles
ocupada.

conivência e omissão
    Esse estarrecedor quadro de crueldade – protago-
nizado por milícias, por setores econômicos conside-
rados “imprescindíveis” ao mercado atual e por agentes
públicos – agrava-se ainda mais com a desassistência
praticada pelo estado nacional, que se materializa na
falta de políticas adequadas em saúde, educação, etc.,
que acarreta, entre outras coisas, o agravamento dos
casos de desnutrição e a falta de socorro aos povos indí-
genas em situações de perigo, bem como a morosidade
na realização de procedimentos de demarcação de pelo
menos 72 tekohas reivindicados pelas comunidades indí-
genas daquele estado.
    Vale ressaltar também os efeitos de um tipo de
violência sistemática e ininterrupta, a chamada violência
interna, uma contínua rede de agressões cotidianas que
se acentua em situações de confinamento, de concen-
tração populacional em áreas diminutas, tal como ocorre
nas reservas de Dourados, Amambai e Caarapó, que
juntas abrigam quase 80% da população Guarani Kaiowá
do estado de Mato Grosso do Sul. Tal situação responde,
em grande medida, pelos 19 suicídios ocorridos neste
ano.
    Pode-se dizer, diante da perversidade dos atos prati-
cados com participação, conivência, ou por omissão do
poder público, que está em curso, naquela unidade da            Tranposição do rio São Francisco – Foto: Regional Cimi Nordeste



 20      Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
artigo


A Violência dos Grandes Projetos
                                                        Saulo Ferreira Feitosa
                                                     Secretário-Adjunto do Cimi



                   D     entre as várias violências praticadas pelo poder
                         público contra os povos indígenas, destacamos a
                   agressão ao patrimônio causada pelos grandes projetos
                   como uma das mais nocivas. Sobretudo pela maneira
                   como a mesma ocorre: de forma velada e sob um manto
                   de aparente legalidade. Durante os dois mandatos do
                   presidente Lula esse tipo de violência foi ampliado. Isso
                   se deve à prioridade dada aos projetos de infraestrutura
                   que têm como expoente o Programa de Aceleração do
                   Crescimento (PAC).
                       No final de 2009 a Funai apresentou uma listagem
                   com 426 empreendimentos que incidem sobre terras
                   indígenas. O maior número deles destina-se à utilização
                   de recursos hídricos, chegando a 144, sendo 81 pequenas
                   centrais hidrelétricas, 41 usinas hidrelétricas e 22 outras
                   iniciativas. Em seguida vêm as linhas de distribuição e
                   transmissão de energia elétrica que juntas somam 65,
                   ficando em terceiro lugar a duplicação e pavimentação
                                                   de rodovias, totalizando
                           Os projetos             62 obras. Além desses, há
                                                   ainda programas de ecotu-
                         que impactam
                                                   rismo, gasodutos, explo-
                        terras indígenas
                                                   ração mineral, ferrovia,
                        continuam a ser            hidrovia etc.
                      implementados sem                São projetos que
                       qualquer consulta           impactam terras indí-
                        às comunidades             genas, demarcadas ou
                            indígenas,             não, afetando a vida de
                          passando-se              inúmeros povos, inclu-
                           ao largo das            sive povos de pouco ou
                           disposições             nenhum contato. A Cons-
                                                   tituição Federal de 1988
                         colocadas pela
                                                   condiciona a sua imple-
                         Convenção 169
                                                   mentação nestes locais
                              da OIT.              à comprovação do “rele-
                                                   vante interesse público
                   da União”, a ser definido em Lei Complementar. Mesmo
                   não havendo ainda uma lei que o defina, os projetos
                   continuam a ser implementados. A autorização também
                   ocorre sem qualquer consulta às comunidades indí-


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genas, passando-se ao largo das disposições colocadas           Somam-se à exploração do potencial hidrelétrico a cons-
nesse sentido pela Convenção 169 da Organização Inter-          trução de rodovias, o avanço do agronegócio, os estragos
nacional do Trabalho (OIT).                                     causados pelas invasões garimpeiras e madeireiras, os
    Não por acaso os níveis de endemias e outros agravos        problemas da sobreposição de unidades de conservação
à saúde provocados por desequilíbrios ambientais                ambiental, as práticas de biopirataria e o crescimento
revelam-se excessivamente altos em comunidades indí-            das pressões do setor minerário pela aprovação de uma
genas, gerando riscos à sua sobrevivência. Por outro lado,      legislação o mais amplamente facilitadora das atividades
é possível identificar a relação existente entre o aumento      de mineração naquelas terras.
dos empreendimentos e o crescimento do número de                    Em meio a tudo isso, o órgão indigenista governa-
assassinatos e outras causas de morte entre os índios,          mental, Funai, que deveria atuar na defesa da integra-
situação agravada pela quase paralisia do governo frente        lidade dos territórios indígenas e da vida de seus habi-
às demandas por demarcação de terras.                           tantes, tem assumido um papel de legitimador das obras
    Como na década de                                           que os afetam, produzindo pareceres favoráveis à imple-
1970, os índios conti-                                          mentação dos mesmos, apenas para atender aos inte-
nuam sendo vistos como                   Para atender           resses governamentais. Foi o que aconteceu com Belo
obstáculo ao crescimento                  interesses            Monte, dentre outros casos tão ou mais graves ainda. O
econômico do país. Nesta                das empresas            projeto Belo Monte está implicado numa série de irregu-
ótica, por que obedecer                 empreiteiras e          laridades. O Painel de Especialistas1 apontou problemas
a preceitos constitucio-               beneficiárias da         que vão desde “a omissão e falhas na análise de situações
nais de proteção ao seu                obra, mais uma           e dados sociais, econômicos e culturais” pelo EIA RIMA
habitat? No interesse               vez, a Constituição         até a não realização de audiências públicas autênticas e
econômico o vale tudo                    brasileira e a         consulta prévia às comunidades indígenas como prevê a
parece ser a única norma                                        Convenção 169 da OIT. O EIA RIMA faz referência a alguns
                                     Convenção 169 da
a ser obedecida. Um                                             povos indígenas, a exemplo dos Juruna do Paquiçamba,
                                      OIT estão sendo
exemplo claro é a obsti-                                        Arara da Volta Grande e os Juruna do KM 17. Mas deixou
nação do presidente da                 violadas, assim          fora outros, como os Xipaia e Kuruaya. Além disto, o EIA
República em relação à                  como o foram            RIMA corrobora a existência de índios em situação de
construção da Hidrelé-                  para viabilizar         isolamento na região (os povos isolados), mas se omite
trica de Belo Monte no                 a transposição           quanto aos impactos da obra sobre estes povos. Por essa
estado do Pará. Embora                das águas do Rio          razão, o empreendimento poderá ser responsável pela
haja estudos que ques-                 São Francisco,           morte de pessoas ou povos isolados, podendo o Estado
tionem a sua capacidade                  o complexo             brasileiro vir a ser denunciado por crime de genocídio.
real de produzir energia e              hidrelétrico do         Mesmo assim a Funai se posicionou favoravelmente ao
ao mesmo tempo compro-                                          projeto.
                                    Madeira, a UHE do
vando o grave dano a ser                                              No dia 14 de abril de 2010, em discurso proferido
                                         Estreito etc.
causado ao meio ambiente,                                       no Congresso Brasileiro do Aço, na cidade de São Paulo,
aos povos indígenas e às                                        o presidente Lula afirmou que “ninguém tem mais
populações regionais, o governo insiste em erguer mais          preocupação para cuidar da Amazônia e dos nossos índios
um monumento à insanidade, assim como o é a Hidrelé-            do que nós”. Apesar de parciais, os dados apresentados
trica de Balbina, construída no estado do Amazonas. Para        neste texto nos asseguram a legitimidade necessária
atender interesses das empresas empreiteiras e benefi-          para no mínimo suspeitarmos dessa afirmativa do Sr.
ciárias da obra, mais uma vez, a Constituição brasileira        Presidente. u
e a Convenção 169 da OIT estão sendo violadas, assim
como o foram para viabilizar a transposição das águas do
rio São Francisco, o complexo hidrelétrico do Madeira, a
UHE do Estreito etc.
    Atualmente há 83 hidrelétricas em operação na região
amazônica e mais 247 barragens estão planejadas para
serem construídas nas próximas duas décadas. Certa-             1 grupo formado por especialistas de diversas instituições de
                                                                  ensino e pesquisa que realizaram uma análise conjunta sobre o
mente muitas outras terras indígenas serão atingidas.             EIA RImA de Belo monte apontando graves falhas e omissões.



  22     Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
artigo


CRIMINalIzaçãO DOS POvOS INDíGENaS:
A nova face do velho colonialismo
                                           Egon D. Heck      econômicos e políticos dos Estados Unidos e das grandes
                                        Regional Cimi MS     corporações multinacionais.
                                                                 Bartomeu Meliá, renomado antropólogo, profundo

E   xpulsar é preciso. Matar é preciso. Demonizar é
    preciso. Criminalizar preciso é. Essa é a velha e nova
estratégia bélica do neocolonialismo com relação aos
                                                             conhecedor do povo Guarani, em recente conferência
                                                             em Dourados (MS), afirmava que “A coloneidade ou
                                                             colonialismo atravessa os cinco séculos da presença do
povos indígenas do Brasil. Esse processo de criminali-       europeu nesse continente encobrindo os povos nativos,
zação não acontece apenas com os povos indígenas, mas        suas culturas, sua organização social e resistência,
de uma maneira mais ampla com os movimentos sociais.         promovendo a destruição dos mesmos e implantando
No campo, por exemplo, a criminalização do Movimento         um processo de desnaturalização do ambiente em
dos Sem Terra é uma evidência de uma ampla e ideoló-         que vivem as populações indígenas. Essa coloneidade
gica política de saque dos recursos naturais e negação       continua se manifestando nas políticas e práticas com
de direitos a setores sociais e étnicos, que lutam pelo      relação aos povos indígenas”. Esse é o processo de mais
reconhecimento de conquistas nas leis, sejam elas as         de 500 anos de colonização, que perdura até hoje. A
constituições nacionais ou legislação internacional. Os      ideologia da coloneidade é a praga que nega o direito à
povos indígenas continuam sendo considerados, por            vida e à alteridade nesse continente. Uma de suas faces
vários Estados Nacionais nas Américas, como ingênuos         e estratégias mais recentes é a criminalização das lide-
e perigosos contingentes manipuláveis pelos interesses       ranças indígenas.




                                                                          Conselho Indigenista missionário - Cimi   23
A Via Campesina, em recente documento, assim                       mente se opuseram e se opõem ao nosso projeto de vida.
define os objetivos da criminalização dos movimentos                   Anunciamos nossa solidariedade ao povo Tupinambá,
sociais1: “criar condições legais e, se possível, legítimas            que no momento está com seu cacique preso injusta-
perante a sociedade para:                                              mente. Saímos renovados espiritual e politicamente
    a) impedir que a classe trabalhadora tenha conquistas              para caminhar na construção de um mundo melhor para
       econômicas e políticas;                                         todos e todas”.2
    b) restringir, diminuir ou dificultar o acesso às polí-
       ticas públicas;                                                 Guarani kaiowá
    c) isolar e desmoralizar os movimentos sociais junto               criminalização e genocídio
       à sociedade;                                                        Na questão Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, a
    d) e, por fim, criar as condições legais para a repressão          criminalização de comunidades e lideranças desse povo
       física aos movimentos sociais”.                                 é evidente e gritante. Ela se reflete em números e casos
    No caso dos povos indígenas a clara intenção final das             emblemáticos, onde se estabelece uma intrincada rede
forças anti-indígenas é impedir a demarcação de suas                   de racismo e conivência dos poderes, especialmente do
terras, e o consequente objetivo da criminalização é criar                                          judiciário. O caso mais reve-
as condições legais e morais para obstruir o usufruto                         a intenção            lador desse processo crimi-
exclusivo desses povos sobre os recursos naturais nelas                                             nalizante é o de Passo Piraju,
                                                                           final das forças
existentes.                                                                                         no município de Dourados.
                                                                            anti-indígenas
                                                                                                    Ali simplesmente se crimi-
Xukuru                                                                        é impedir a           nalizou praticamente toda a
criminalização massiva                                                       demarcação             comunidade e em especial
    Vejamos algumas das principais situações de crimina-                     das terras. O          as lideranças, no intuito de
lização de comunidades e lideranças indígenas durante                         objetivo da           desmantelar e expulsar o
o ano de 2009. Um dos estados que se sobressai pela                        criminalização.é         grupo de uma ínfima parte
amplitude da criminalização é Pernambuco. E dentre                        criar as condições        de seu território tradicional
os povos indígenas deste estado é o povo Xukuru que                           legais para           retomado. Como fato mais
mais duramente tem sido atingido. Foram 35 lideranças                    obstruir o usufruto        recente podemos citar a
criminalizadas. Elas foram indiciadas e processadas por                                             armação feita por policiais
                                                                          exclusivo desses
uma variedade de crimes em decorrência de uma mani-                                                 que levou à prisão cinco
                                                                           povos sobre os
festação que surgiu depois da tentativa de assassinato                                              membros desta comuni-
do cacique Marcos Xukuru no ano de 2003, na ocasião                       recursos naturais         dade, em fevereiro de 2009.
foram mortos dois jovens que o acompanhavam. Porém,                           existentes.           A apreensão e a busca das
mesmo pesando sobre eles o sofrimento contínuo dessa                                                casas aconteceram de forma
tensão e ameaça permanente, o povo Xukuru não se                       violenta e truculenta.
deixa abalar, pelo contrário, demonstra grande dispo-                      No caso de Apyka’i, próximo a Dourados, onde foram
sição e força para reverter esse quadro. No documento                  queimados barracos da comunidade à beira da estrada
final da sua última Assembléia os Xukuru assim explici-                e feridas pessoas que ali estavam, o procurador do
taram essa decisão: “Mas, mesmo com toda essa força,                   Ministério Público Federal em Dourados, Marco Antonio
mobilização e vontade de viver em paz em nosso terri-                  Delfino, definiu o covarde ataque como tentativa de
tório, nossas lideranças continuam sendo criminalizadas.               genocídio: “Um grupo armado teve intenção explícita
Nossos parentes Rinaldo Feitoza e Edmilson Guimarães                   de atacar outro grupo por suas características étnicas,
continuam presos injustamente e nosso Cacique e lide-                  porque são indígenas”.3 Nos relatórios da Funai e do
ranças sendo perseguidos. Por fim, saímos mais uma vez                 MPF, funcionários da usina São Fernando e da empresa
fortalecidos da nossa assembléia para continuar lutando                de segurança (Gaspem) são apontados como responsá-
junto às lideranças, firmes contra as forças que historica-            veis pelo ataque.


1 A ofensiva da direita para criminalizar os movimentos sociais no Brasil, Via Campesina Brasil, janeiro 2010
2 Documento final da Assembléia Xukuru, Aldeia Cajueiro, Pernambuco, 17 a 20 de maio de 2010
3 Amnesty Internacional 30/09/2009; Informe Cimi 24/09/2009; Repórter Brasil 1/10/2009



  24      Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
Outro exemplo é o de Kurusu Ambá. As lideranças
estão sendo criminalizadas e uma delas teve que                            anexo 1
deixar sua comunidade, buscando segurança. Neste       Lideranças indígenas em processo de crimi-
local houve prisões de várias lideranças desde 2007,           nalização no ano de 2009
quando quatro delas foram condenadas a 17 anos e
meio de reclusão. Foi um processo relâmpago, que        Nome                                               Povo
desde o inquérito até a condenação levou apenas
sete meses, quando casos envolvendo assassinatos        SANTA CATARINA – 03 representantes indígenas
de lideranças indígenas levam dezenas de anos para      Cacique Jeremias Pattã
serem concluídos ou simplesmente prescrevem,            Vaihecu Ndilli
                                                                                                         Xokleng
como é o caso do assassinato de Marçal de Souza         Vêi-Tcha Têie Winklr (conhecida
Tupã’i. Um indicador dessa agilidade de condenação      também como Suzana)
indígena são os mais de 200 índios nos presídios do
cone sul do Mato Grosso do Sul, o maior número de       PERNAMBUCO – 35 representantes indígenas
indígenas encarcerados num estado no país.              Antônio Gilvam Macena
                                                        Antônio Luciano Albuquerque Melo
Tupinambá                                               Antônio Luiz Lopes de Melo
engenhosa estratégia persecutória                       Antônio Monteiro Leite
    A região sul da Bahia é um lugar onde se pode       Armando Bezerra dos Santos
constatar muito facilmente o requinte dos instru-       Cássio Gerônimo do Nascimento Silva
mentos utilizados para intensificar a estratégia de     Cristóvão Ferreira Leite
criminalização das lutas indígenas. Numa enge-          Débora Macena dos Santos
nhosa estratégia persecutória, todas as ações legí-     Djalma Bezerra dos Santos
timas empreendidas pelas comunidades indígenas          Francisco de Assis Jorge de Melo
para defender seus territórios tradicionais têm         Geovane Macena
sido convertidas em ações criminosas. A Polícia         Gerson Albuquerque de Melo
Federal, através da produção de inúmeros inqué-         João Jorge de Melo
ritos para apurar “supostos crimes” praticados          José Carlos da Silva Batista
pelos índios, tem funcionado como agente prin-          José Edson Albuquerque Melo
cipal nesse processo. Em alguns inquéritos chega-se     José Gonsaga Pereira
ao absurdo de caracterizar as comunidades como          José Jorge de Melo
quadrilhas, transformando os caciques em “chefes”       José Osinaldo Gonçalves Leite Júnior              Xukuru
das mesmas. Como conseqüência, tanto a Justiça          José Robenilson Lopes
Federal como a Justiça Estadual acabam expedindo        José Romero Lopes de Melo
vários mandados de prisão contra as principais lide-    José Romero Macena
ranças indígenas que estão à frente das lutas em        José Sérgio Lopes da Silva
defesa de suas terras. O exemplo mais claro é o         Juliana Monteiro
que vem ocorrendo com a comunidade Tupinambá            Luiz Carlos de Araújo
da Serra do Padeiro, onde o cacique Rosival e mais      Marcos Luidson de Araújo
quatro irmãos seus estão sendo processados, sendo       Maria das Montanhas Macena
o primeiro denunciado, dentre outros crimes, por        Maria Romelita Macena
“formação de quadrilha”.                                Paulo Ferreira Leite
    Contudo, independentemente da existência ou         Paulo Romero Monteiro
não de mandados de prisão, a Polícia Federal tem        Raimundo Bezerra dos Santos
agido de forma violenta em várias situações, como       Rinaldo Feitoza Vieira
em um dos casos de lesões corporais descritos neste     Ronaldo Jorge de Melo
relatório, ocorrido em junho de 2009, onde 5 indí-      Uilho Lopes da Silva
genas foram capturados e agredidos, inclusive com       Welligton Albuquerque Melo
choques elétricos na região dorsal e genital. u         Wilton Lopes da Silva


                                                                      Conselho Indigenista missionário - Cimi     25
artigo


Repercussões da realidade agressiva contra
os Povos Indígenas no Poder Judiciário
                                 Paulo Machado Guimarães                                      conformam um conjunto
                      Advogado e Assessor Jurídico do Cimi
                                                                       Os conflitos           de fatores que exige inter-
                                                                   possessórios, que          venção do poder público

A    s informações sistematizadas pelo Cimi em seu novo           se sucedem, porque          de forma sistemática e
     Relatório de Violência contra os Povos Indígenas                naturalmente as          articulada. E é exatamente
referente a 2009, indicam que o cenário nacional de                   comunidades             esta ação do Estado, de
agressões aos povos indígenas permanece inalterado.                indígenas não têm          forma sistemática e arti-
    Em cerca de um terço das unidades da federação                   para onde ir, só         culada que ainda se revela
são registrados casos de abuso de poder e ameaças                   terão fim quando          precária.
de morte. Mas realmente o que continua chamando a                                                 As conseqüências jurí-
                                                                  estas comunidades
atenção consiste no impressionante percentual de homi-                                        dicas mais imediatas desta
                                                                  estiverem adequada          situação traduzem-se, em
cídios envolvendo membros de comunidades indígenas,
                                                                    e condignamente           relação às agressões
em sua estarrecedora maioria entre os Guarani Kaiowá,
no estado do Mato Grosso do Sul. Dos 60 casos regis-                    instaladas            contra a pessoa e o pa-
trados, 33 (55%) referem-se a comunidades indígenas                   nas terras que          trimônio, na forma de in-
neste estado. As 27 ocorrências restantes (45%) distri-             tradicionalmente          quéritos policiais e ações
buem-se em 13 unidades da federação, sendo que na                     ocupam e sob            penais e em ações posses-
Bahia foram registrados 7 homicídios, 6 destes vitimando             proteção que a           sórias ou contra a demar-
indígenas do Povo Pataxó, na região de Coroa Vermelha.            Constituição impõe          cação de terras indígenas.
Dos 18 casos de abuso de poder, 1 dos casos envolve 5                    à União.             Neste contexto, no que
Tupinambá, presos e gravemente agredidos por ação de                                          se refere aos homicídios
agentes da Polícia Federal, causando-lhes significativas                                      no Mato Grosso do Sul,
lesões corporais, típicas da prática de tortura.                importa reiterar a observação já feita por muitos, no
    Estes três povos indígenas - Guarani Kaiowá, Pataxó         sentido de que não será processando e condenando in-
e Tupinambá - localizados em estados geograficamente            dígenas pela agressão e homicídio de outros índios, que
distantes entre si, se aproximam por uma singularidade          se conseguirá enfrentar a causa destas mazelas, reflexo
macabra. No caso dos Guarani Kaiowá e Pataxó estão              da desorganização sociocultural destas comunidades.
submetidas a forte e intensa influência de comunidades          As circunstâncias indicadas em relação a cada caso de
urbanas não-índias. Já as terras que os três povos tradi-       homicídio envolvendo os 33 Guarani Kaiowá revelam
cionalmente ocupam ainda aguardam serem administra-             nitidamente a gravidade dos desajustes socioculturais a
tivamente demarcadas. Apesar da Terra Indígena Coroa            que as comunidades das vítimas estão submetidas. Em
Vermelha já estar demarcada e registrada em cartório, os        um grande número das ocorrências o motivo da violên-
indígenas aguardam a revisão de seus limites, por ter sido      cia é o uso de bebida alcoólica, que potencializa desen-
demarcada com redução da área. Também está invadida             tendimentos acarretando agressões com a utilização de
por empreendimentos imobiliários, em razão do grande            facas. Mas nestas 33 ocorrências, o caso do professor
apelo turístico da região. Tanto os Guarani Kaiowá, como        Genivaldo Vera merece destaque. Junto com seu primo,
os Pataxó e os Tupinambá litigam ainda contra fortes            o igualmente professor Rolindo Vera, ambos Guarani
interesses econômicos e políticos regionais.                    Kaiowá, integrava a liderança do grupo de 25 Guarani
    Estes indicadores, somados às relacionadas agres-           Kaiowá que haviam retomado a posse do tekohá Ypo,i
sões ao patrimônio, que revelam os conflitos pela posse         para sua comunidade. Após confronto com seguranças
da terra e preservação dos recursos naturais nelas exis-        de uma fazenda, no dia 29 de outubro 2009 desapare-
tentes, somados às omissões do poder público, seja              ceram. O corpo do professor Genivaldo foi encontrado
na área educacional, seja no atendimento à saúde,               boiando num córrego localizado na fronteira com o Para-


  26     Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
Desde 1983 os Pataxó Hã Hã Hãe aguardam a decisão do STF sobre a posse de suas terras tradicionais – Foto: Clarissa Tavares/Arquivo Cimi


guai, próximo ao local do confronto. O corpo do profes-                       O círculo vicioso que os pretensos proprietários das
sor Rolindo ainda se encontra desaparecido. Os indícios                   terras indígenas, com apoio político de parlamentares
indicam a prática de homicídio em razão da disputa pela                   e governantes daquela unidade da federação desenca-
posse da terra tradicionalmente ocupada por sua co-                       deiam, visa adiar a solução do problema, que nos termos
munidade. Este episódio, somado aos assassinatos, em                      constitucionais passa pela demarcação das terras que
2008, de lideranças Guarani Kaiowá em Kurussú Ambá,                       tradicionalmente ocupam. Terras às quais os Guarani
como os conflitos verificados no Passo Piraju, em 2007,                   Kaiowá estão impossibilitados de exercer a posse perma-
se situam no contexto do impressionantemente grave                        nente e o usufruto exclusivo, por estarem invadidas.
cenário de violências e discriminações a que os Guarani                       Os conflitos possessórios, que se sucedem, porque
Kaiowá estão submetidos em razão da disputa pela posse                    naturalmente as comunidades indígenas não têm para
e a demarcação das terras tradicionais.                                   onde ir, só terão fim quando estas comunidades esti-
    Perseguir e desqualificar publicamente lideranças                     verem adequada e condignamente instaladas nas terras
indígenas por meio de veículos de comunicação, bem                        que tradicionalmente ocupam e sob proteção que a
como indiciá-los pela prática de delitos, ou processá-                    Constituição impõe à União.
los criminalmente e condená-los a penas de reclusão                           Tanto nos casos relacionados diretamente à disputa
em presídios de Mato Grosso do Sul, serve apenas para                     pela posse da terra, como nos casos de violência decor-
agravar o problema a que estão submetidos e constituir                    rente de uso de drogas ou bebidas alcoólicas, impres-
a maior população indígena encarcerada do país. Essa                      siona que a origem dos problemas está na limitação dos
situação consolida uma deturpada imagem social sobre                      espaços territoriais em que as comunidades Guarani
a população indígena, como sendo de desocupados,                          Kaiowá estão vivendo. Daí a inevitável conclusão de
improdutivos e criminosos.                                                que somente com a garantia da integridade dos espaços
    O contexto de violações e agressões a que os Guarani                  territoriais a que têm direito constitucional será possível
Kaiowá estão submetidos, legitima a percepção de que                      descortinar um novo cenário de perspectivas, que, junto
estão envolvidos em um conjunto de fatores caracteriza-                   com uma série de outras ações governamentais e indí-
dores da prática de genocídio.                                            genas, permitam aos jovens indígenas e suas famílias


                                                                                           Conselho Indigenista missionário - Cimi         27
se reencontrar com suas histórias e culturas. Ou seja,           discriminação e as agressões às quais os Guarani Kaiowá
                                 é necessário, em primeiro lugar, que lhes sejam asse-            estão sendo vítimas encontra nos Tupinambá dramática
                                 guradas as terras que tradicionalmente ocupam, de                semelhança, a exemplo do que passaram os Macuxi, os
                                 forma que suas comunidades possam se reestruturar, de            Wapixana, os Taurepang, os Ingarikó e os Patamona,
                                 acordo com suas formas próprias de organização social,           nos seus esforços para conseguir a demarcação e a
                                 de acordo com seus usos, costumes, línguas, crenças              desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e às
                                 e tradições, nos termos reconhecidos pelo art. 231 da            perseguições de que são vítimas mais de 35 lideranças
                                 Constituição Federal. Para tanto, impõe-se superar, espe-        do povo Xukuru, no estado de Pernambuco, condenadas
                                 cialmente no Poder Judiciário, as objeções e as impugna-         pela Justiça Federal desse estado, processo aguardando
                                 ções de interesses privados e de setores políticos.              apreciação do recurso interposto no Tribunal Regional
                                     Não se nega, naturalmente o direito de quem quer             Federal da 5ª Região.
                                 que seja em questionar em juízo alegados direitos seus.             A perspectiva de que as terras tradicionalmente
                                 Mas aos representantes do Poder Judiciário, como aos             ocupadas pelos Tupinambá sejam demarcadas tem
                                 membros do Ministério Público estaduais e federal se             projetado sobre suas comunidades e em especial sobre
                                 coloca o desafio no sentido de situar estes conflitos            suas lideranças intensas reações e manifestações de inti-
                                 judicializados no contexto mais amplo da necessidade             midação por parte de interesses econômicos e políticos
                                 urgente dos espaços territoriais virem a ser garantidos,         locais.
                                 por serem indispensáveis à vivência e à convivência                 Os pretensos proprietários das terras tradicional-
                                 destas comunidades como expressões de povos étnica e             mente ocupadas pelo povo Tupinambá têm desenvol-
                                 culturalmente distintos entre si e da sociedade brasileira       vido a tática de registrar ocorrências na Polícia Federal,
                                 que os envolve.                                                  por supostas práticas delituosas praticadas pelas lide-
                                     Trata-se de tema imprescindível à conformação de             ranças Tupinambá, em especial as da Serra do Padeiro.
                                 fundamentos e objetivos da República Federativa do               Destas ocorrências, a maioria registrada na Polícia
                                 Brasil, inscritos no art. 1º, II e III e no art. 3º da Consti-   Federal de Ilhéus, resulta a instauração de Inquéritos
                                 tuição Federal.                                                  Policiais. Em sua grande maioria, tratam-se de reclama-
                                     É nesta mesma perspectiva de desafio da República            ções de supostos proprietários e posseiros de terras que
                                 brasileira e conseqüentemente de todo seu povo, que a            se dizem ameaçados ou turbados na posse das terras
Foto: Clarissa Tavares/Arquivo Cimi




                                 Os Guarani Kaiowá em frente ao STF exigem agilidade nos processos contra as demarcações que se alastram no judiciário



                                      28   Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
1280418665_Relatorio de Violencia contra os Povos Indigenas no Brasil - 2009
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  • 1. RelatóRio 2009 violência contra os povos indígenas no Brasil
  • 2.
  • 3. ISSN 1984-7645 violência contra os povos indígenas no Brasil Relatório 2009 APOIO
  • 4. Este relatório é uma publicação do Conselho Indigenista missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). PRESIDENTE Dom Erwin Kräutler ENDEREçO SDS - Ed. Venâncio III, sala 309-314 CEP 70.393-902 - Brasília-DF Tel: (61) 2106-1650 Fax: (61) 2106-1651 www.cimi.org.br Violência contra os povos indígenas no Brasil – 2009 ISSN 1984-7645 COORDENAçãO DA PESquISA Lúcia Helena Rangel – Doutora em Antropologia – PuC-SP PESquISA E LEVANTAmENTO DE DADOS Regionais do Cimi e Setor de documentação do Cimi ORgANIzAçãO DAS TABELAS DE DADOS Eduardo Holanda, Leda Bosi, marline Dassoler Buzatto e marluce Ângelo da Silva REVISãO DAS TABELAS DE DADOS Denise da Veiga Alves, Lúcia Helena Rangel e marline Dassoler Buzatto SELEçãO DE ImAgENS Aida Cruz, Cleymenne Cerqueira e maíra Heinen EDIçãO Setor de Comunicação do Cimi REVISãO Leda Bosi DIAgRAmAçãO Licurgo S. Botelho Capa Protesto contra despejos – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi Criminalização de lideranças indígenas – Foto: J. Ripper Exército invade áreas indígenas para obras da transposição – Foto: Equipe Cimi Nordeste Contracapa Desmatamento em área indígena – Foto: Equipe itinerante Cimi Norte I Sepultamento de indígena vítima de assassinato – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi Barraca queimada por pistoleiros – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi
  • 5. HoMenageM Foto: Arquivo Cimi Rolindo Vera e Genivaldo Vera “Os dois desapareceram. Não viverão nas terras que queriam viver, não vão mais fazer roça para alimentar seus filhos, não vão mais educar suas crianças, não vão mais dançar quaxiré, (ritual de festa Guarani) não vão fazer novas rezas, não vão ser tamõi (avós). Não verão a lei se cumprir, porque ela demorou muito, muito mais que a bala que tirou a vida deles. Guarani é como uma flor que brota da terra e desabrocha perfumando a natureza. E às vezes desaparece deixando um aroma no ar. É como as aves que vêm e desaparecem. Mas o nosso sentimento e a lágrima que cai no chão fortalecem o nosso espírito e voltam a brilhar em nosso meio. Mas até quando vamos ver as flores pisadas, as aves mortas e o sangue derramado? Até quando vamos ter que esperar para poder entrar em nosso chão? Até quando continuaremos a ser expulsos, confinados, discriminados, assassinados?” Documento de professores indígenas do Mato Grosso do Sul para a Conferência de Educação Indígena, em homenagem aos professores Rolindo Vera e Genivaldo Vera, primos, que desapareceram durante um violento despejo da terra Ypo’i, no dia 30 de outubro de 2009. Em 7 de novembro o corpo de Genivaldo foi encontrado, ele foi assassinado. Rolindo continua desaparecido.
  • 6. Foto: Cristiano Navarro “... nós índios, que nunca batemos em ninguém, nunca matamos ninguém, nunca espancamos, estamos todos indiciados porque estamos lutando pelas nossas terras, porque não queremos morrer de fome. nós estamos ocupando nosso território tradicional e por ocupar nosso território tradicional estamos sendo perseguidos...” Cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva)
  • 7. sUMÁrio Paz e terra para os povos indígenas ....................................................................................................................... 7 Dom Erwin Kräutler – Bispo da Prelazia do Xingu (PA) e Presidente do Cimi apresentação O Governo Federal e os povos indígenas: a omissão como opção política ........................................ 9 Roberto Antonio Liebgott – Vice-Presidente do Cimi introdução Violência sistemática contra os povos indígenas ........................................................................................... 13 Lúcia Helena Rangel – Antropóloga / PUC/SP artigos Racismo institucional em Mato Grosso do Sul ................................................................................................ 16 Iara Tatiana Bonin – Doutora em Educação pela UFRGS e Prof. do PPG da Univ. Luterana do Brasil A Violência dos Grandes Projetos .......................................................................................................................... 21 Saulo Ferreira Feitosa – Secretário-Adjunto do Cimi Criminalização dos Povos Indígenas: a nova face do velho colonialismo ......................................... 23 Egon D. Heck – Regional Cimi MS Repercussões da realidade agressiva contra os Povos Indígenas no Poder Judiciário ............. 26 Paulo machado guimarães – Advogado e Assessor Jurídico do Cimi capítulo i – violência contra o patrimônio Omissão e morosidade na regularização de terras ................................................................................... 29 Conflitos relativos a direitos territoriais ...................................................................................................... 41 Invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio ............ 44 capítulo ii – violência contra a pessoa praticada por particulares e agentes do poder público Assassinato ................................................................................................................................................59 Tentativa de assassinato ............................................................................................................................70 Homicídio culposo ......................................................................................................................................73 Ameaça de morte .......................................................................................................................................76 Ameaças várias ..........................................................................................................................................79 Lesões corporais dolosas ...........................................................................................................................83 Abuso de poder ..........................................................................................................................................86 Racismo e discriminação étnico-cultural ....................................................................................................89 capítulo iii – violências provocadas por omissão do poder público Suicídio e tentativa de suicídio .................................................................................................................. 95 Desassistência na área de saúde ............................................................................................................. 99 morte por desassistência à saúde ........................................................................................................... 107 mortalidade na infância ........................................................................................................................... 111 Desnutrição ............................................................................................................................................. 115 Disseminação de bebida alcoólica e outras drogas ................................................................................ 116 Desassistência na área de educação escolar indígena .......................................................................... 118 Desassistência geral ............................................................................................................................... 121 capítulo iv – violência contra povos indígenas isolados e de pouco contato Povos isolados – refugiados do “desenvolvimento” na Amazônia ...........................................................129 grupos de indígenas isolados no mato grosso .......................................................................................132 tabelas resumo da violência contra os povos indígenas ......................................................................... 143 Conselho Indigenista missionário - Cimi 5
  • 8. Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi Comunidade Apika’y (MS) após incêndio criminoso em outubro de 2009
  • 9. Paz e terra para os povos indígenas M ais uma vez, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a público denunciar as mais variadas formas de violências praticadas contra os povos indígenas no Brasil. Desta vez, com dados relativos ao ano de 2009. Este Relatório de Violência, que foi lançado pela primeira vez em 1993 constitui-se numa importante ferramenta de luta que o Cimi utiliza para mostrar à sociedade e ao governo brasileiro a violação dos direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT. Como poderão observar, no ano de 2009, mais uma vez, houve uma grande concentração de casos de violência no Mato Grosso do Sul, especialmente relacionados ao povo Guarani Kaiowá. O Estado brasileiro, por suas ações e omissões, é o grande responsável por este ininterrupto e avassalador processo de violência que assola este povo indígena. A não demarcação de suas terras tradicionais permanece sendo o principal elemento causador dessa lamentável realidade. Faz-se necessário ressaltar também as irresponsáveis investidas do governo brasileiro na implantação de grandes projetos de infra-estrutura, causadores de profundos impactos na vida de dezenas de povos indígenas no Brasil. Dentre estes destaco a Hidrelétrica de Belo Monte, obra faraô- nica e demoníaca, que trará conseqüências imprevisíveis e irreversíveis para milhares de pessoas, indígenas e não-indígenas, da região de Alta- mira, no estado do Pará. Para os povos indígenas, a terra é fonte e mãe da vida, o espaço vital, a garantia da existência e reprodução enquanto coletividades específicas e diferenciadas. A defesa do território equivale à defesa da sobrevivência material e espiritual. Por tudo isso, os indígenas reivindicam que seja reconhecido e respeitado o direito às suas terras tradicionais. Lamentavelmente, em 2009, na grande maioria dos estados brasileiros, ocorreram conflitos decorrentes da invasão de terras indígenas por parte de diversos grupos econômicos, de modo especial usineiros, madeireiros e empresas de energia elétrica. Impulsionado pelo Evangelho de Jesus Cristo, o Cimi, também por meio deste relatório, visa continuar contribuindo para que haja “Paz e Terra para os Povos Indígenas” no Brasil. Dom Erwin Kräutler Bispo da Prelazia do Xingu e Presidente do Cimi Conselho Indigenista missionário - Cimi 7
  • 10. a realidade dos povos indígenas precisa ser exposta e enfrentada, e os responsáveis pelas agressões denunciados e punidos. Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi Despejo da comunidade Laranjeira Nhanderu (MS) depois que a Funai descumpriu ordem judicial de finalizar os estudos de demarcação
  • 11. Apresentação O Governo Federal e os povos indígenas: a omissão como opção política Roberto Antonio Liebgott Vice-Presidente do Cimi O relatório de Violência contra os povos indígenas, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no ano de 2009, denuncia a omissão como opção política do Governo Federal em relação aos povos indígenas. A não demarcação de terras, as perseguições, as prisões arbitrárias, os espancamentos, os assassinatos, os ataques contra acampamentos indígenas, a queima de casas e barracos de lona, a execução de lideranças, a invasão de terras, o desmatamento, a devastação territorial, os ataques aos indígenas em situação de isolamento e risco, as agressões policiais, o trabalho escravo, a destruição de plantações e de animais domésticos, a desnutrição, as mortes por desnutrição, os confinamentos, o descumprimento de ordens judiciais, as ameaças de morte, as torturas, as epidemias, a mortalidade infantil, a omissão nas áreas da segurança pública, saúde e educação indígena. Enfim, o desrespeito aos preceitos constitucionais e às convenções internacionais. Essas foram, mais uma vez, as graves violências praticadas por particulares e por agentes do poder público contra os povos indígenas do Brasil registradas pelo Cimi e ocorridas no ano de 2009.Tais práticas não podem ficar silenciadas e muito menos serem tratadas com naturalidade, como quer o Governo Federal ao defender que “para haver desenvolvimento são inevitáveis alguns impactos e problemas”. Com o propósito de evitar que as agressões contra a vida e contra a natureza sejam tratadas como partes do pacote desenvolvimentista do governo, o Cimi as explicita e as denuncia para a população, aos organismos de defesa dos direitos humanos, aos legisladores, aos juízes, às autoridades. É convicção do Cimi, como organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que assumiu o radical compromisso com a causa indígena, de que toda esta realidade precisa ser exposta e enfrentada, e os responsáveis pelas agressões sejam denunciados. Os dados apresentados no relatório merecem cuidadosa análise, de modo especial pelos poderes públicos. É deles a competência para executar as ações e serviços aos povos indígenas, assegurar o cumprimento das normas constitucionais e legislar, tendo como base a Constituição Federal. Desde o dia 5 de outubro de 1988, data de sua promulgação, a Constituição brasileira determina garantias e direitos aos povos indígenas, no seu Capítulo VIII -“Dos Índios”, artigos 231 e 232. Quem são os responsáveis pelas violências contra indígenas, lideranças e comunidades? A leitura dos dados aponta que os responsáveis são particulares e agentes do poder público. Entre os particulares destacam-se latifundiários, políticos, usineiros, empreiteiros, funcionários de fazendas, agentes de segurança, pistoleiros. As motivações que levam estes segmentos a atuarem ostensivamente contra os povos indígenas são: a questão fundiária, e a exploração das terras e de seus recursos ambientais, minerais e hídricos. Conselho Indigenista missionário - Cimi 9
  • 12. Quanto aos agentes do poder público, os dados remetem a uma análise mais apurada a Funai se acerca das formas, métodos e motivos que levam às práticas de violações de direitos à vida, mostra incapaz as normas legais e as obrigações acerca das ações dos servidores públicos. de cumprir com No âmbito federal, os responsáveis pela execução da política indigenista são suas obrigações. efetivamente três: Ministério da Justiça, que atribui à Funai as demandas relativas à terra, demarcações, fiscalizações e proteção; Ministério da Saúde, responsável pela assistência aos isso ocorre povos indígenas e que tem como executora das ações a Funasa; e Ministério da Educação porque este órgão que em articulação com estados e municípios prestam serviço em educação escolar. é susceptível Quanto às demarcações, a Funai se mostra incapaz de cumprir com suas obrigações. às pressões Isso ocorre porque este órgão é susceptível às pressões de políticos e de segmentos de políticos e econômicos contrários aos direitos indígenas. Evidencia-se esta situação em Mato Grosso do Sul onde a Funai não consegue sequer dar condições de trabalho para que os grupos técnicos de segmentos procedam aos estudos de identificação e delimitação de terras. Ao contrário, o presidente do econômicos órgão indigenista, Márcio Meira, submeteu os grupos de trabalho a interesses do governo do contrários aos estado e aos fazendeiros que na maioria são invasores de terras indígenas. direitos indígenas. O Cimi publica também, neste relatório, a Listagem Geral das Terras Indígenas sem Providência, baseada em dados das equipes regionais do Cimi e da própria Funai. São 324 terras sem nenhuma providência, sequer para dar início ao processo de demarcação; o que mostra o tamanho da inoperância do órgão oficial e a dimensão dos problemas que enfrentam os povos indígenas na conquista de seu direito básico, qual seja, a terra que lhes garante a vida e integridade de sua existência. O Ministério da Justiça, instância responsável por decidir se uma terra pode ou não ser declarada como sendo de ocupação tradicional indígena, declarou apenas 11 terras indígenas ao longo do ano de 2009. Por outro lado, permitiu, entre outros casos, que agentes da Polícia Federal invadissem a terra do Povo Tupinambá, na Bahia, e lá praticassem as mais variadas formas de violências: destruição do patrimônio indígena, espancamentos, ameaças, prisões ilegais e até tortura. Assim como a Funai é negligente, omissa e subserviente, o Ministério da Justiça, no que tange aos direitos indígenas, procede da mesma forma. As informações relativas à omissão e inoperância da Funasa são corriqueiras. Houve a promessa de que seria criada uma Secretaria de Atenção à Saúde Indígena no decorrer do ano de 2009. O governo gerou expectativas, mas nada foi concretizado. Enquanto isso houve descaso no atendimento à saúde e o alastramento de doenças como tuberculose, desnutrição, dengue, gripe suína, malária e hepatite A, B, e C em muitas comunidades indígenas. Já a Presidência da República, que através do presidente deveria homologar as terras que passaram pelos estudos antropológicos e foram declaradas como sendo de ocupação indígena, homologou apenas 9 terras em 2009, das 59 que aguardam por este ato administrativo. Para piorar a situação de paralisia, deste total 11 terras foram declaradas pelos governos anteriores. Ou seja, estão aguardando a assinatura do presidente desde que tomou posse em 1º de janeiro de 2003. Para piorar a situação de paralisia em 2009, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) quase imediatamente suspendeu a homologação da terra indígena Arroio-Korá, situada em Mato Grosso do Sul, e parcialmente a homologação da terra Anaro, em Roraima. O pronunciamento do presidente da República durante a homologação daquelas nove terras indígenas é sintomático e mostra que o Poder Executivo opta por ceder às pressões políticas e não dar andamento célere às demarcações de terras indígenas: “(...) 10 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 13. Aty Guasu do povo Guarani Kaiowá na aldeia Cerro Marangatu (MS) – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi essa demarcação das terras indígenas que nós fizemos agora... Eu não ia fazer agora, Marcio [Meira, presidente da Funai, presente na platéia], porque você me deve uma, que eu vou cobrar só no ano que vem, agora. Estamos com espírito de Natal, vamos deixar para lá”. Os dados de violência comprovam a omissão e a complacência do poder público com as agressões praticadas por terceiros contra indivíduos, comunidades e povos. Evidencia também os interesses em disputa e a tendência, de modo especial do Poder Executivo, de seguir pelo caminho traçado pelas elites econômicas, que buscam, em nosso país, extrair as riquezas existentes nas terras, no subsolo, nas águas e matas. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é a expressão máxima das escolhas e prioridades do atual governo. Governar aliando-se às empreiteiras, estruturadas na sua maioria durante o período da ditadura militar e que têm larga experiência em ações exploratórias e de devastação das as violências riquezas ambientais e de vidas humanas. contra o O governo também se abraça aos latifundiários, usineiros, agentes do agronegócio, patrimônio dos produtores da soja transgênica, aos barrageiros, aos grupos que almejam a exploração da povos indígenas, energia hidráulica e das águas e nelas buscam a obtenção de incalculáveis lucros financeiros. demonstram Por isso a liberação das obras do complexo hidrelétrico do rio Madeira, em Rondônia, sem levar a opção pelo em conta os impactos aos povos indígenas da região, inclusive alguns povos isolados, e por desenvolvimento isso a liberação das obras da transposição do rio São Francisco. São ambos empreendimentos que pretendem consolidar o projeto de privatização das águas no Brasil. a qualquer custo, sem que seus As violências contra os povos indígenas, especialmente aquelas praticadas contra o direitos sejam seu patrimônio, demonstram que as terras destes povos estão no centro das disputas políticas e econômicas. Demonstram também a opção pelo desenvolvimento a qualquer custo, sem respeitados e/ou que os direitos indígenas sejam respeitados e/ou garantidos. Os grandes empreendimentos garantidos. vão sendo implantados sem que as comunidades indígenas tenham ao menos o direito de serem ouvidas como evidenciaram a ausência de consultas junto aos 31 povos indígenas impactados pela transposição do rio São Francisco e a farsa das audiências públicas para a hidrelétrica de Belo Monte. Os “entraves humanos” ou como gosta de enfatizar o presidente da República, “os penduricalhos”, não podem ser obstáculos à consolidação do lucro de um lado e à hegemonia política de outro.  u Conselho Indigenista missionário - Cimi 11
  • 14. a violência tem sido uma constante, que, mesmo sendo absorvida na vida cotidiana dos povos indígenas, não pode ser banalizada, nem encarada como normalidade. Foto: Sean Hawkey/ACT As comunidades indígenas, apesar de toda pressão contrária, continuam sua luta, recriando o sentido da vida, intimamente ligado à terra
  • 15. introdução Violência contra os povos indígenas: constantes e recorrências Lúcia Helena Rangel Antropóloga/ PUC SP N o ano de 2009 o Cimi registrou inúmeras ocorrências de violências e viola- ções de direitos contra pessoas e comunidades indígenas em todo o terri- tório brasileiro. A metodologia empregada é a mesma dos relatórios anteriores, tomando-se como fonte principal o noticiário da imprensa através de jornais, sítios virtuais, veículos radiofônicos e o registro sistemático efetuado pelas equipes de base que compõem os Regionais da instituição. Infelizmente não se pode constatar uma tendência de diminuição dos conflitos e situações de violência, mesmo que alguns números sejam menores do que os registrados em anos anteriores. As oscilações numéricas não permitem constatações precisas, pois nos últimos anos aumentam e diminuem os tipos de ocorrências, em dife- rentes regiões, referentes aos indicadores analisados: violências e violações contra o patrimônio indígena, contra a pessoa, as omissões do poder público e a situação dos povos que vivem em isolamento ou com pouco contato com a sociedade regional. Nesse relatório não estão esgotadas todas as ocorrências reais; o que temos aqui representa apenas fatores parciais, cujos registros foram possíveis de obter na pesquisa realizada durante todo o ano. A cada ano a publicação do Relatório de Violência Contra os Povos Indí- genas no Brasil causa uma espécie de angústia porque se apresenta desatua- lizado imediatamente; enquanto a equipe elabora a edição, as ocorrências de violência não cessam. Temos a impressão de que o que estamos para publicar é menos importante do que está ocorrendo na realidade dos povos abatidos pela violência, arbitrariedade, expropriação e toda sorte de violações. Essa sensação, decorrente da metodologia, não se restringe a desatualização dos dados o que é próprio de qualquer pesquisa empírica; afinal, a vida real não se suspende, aguardando a verificação dos dados coletados, sua sistematização, análise e editoração. Ela decorre dos fatos e episódios em curso, tão brutais quanto os do ano anterior, vertiginosamente, absorvendo as preocupações do Cimi e de todos aqueles envolvidos na luta pelos direitos indígenas que continuam sendo violados. A violência tem sido uma constante, que, mesmo sendo absorvida na vida cotidiana dos povos indígenas, não pode ser banalizada, nem encarada como normalidade. Na vida cotidiana as comunidades não se deixam abater, repro- duzem-se nos limites de suas possibilidades, criam estratégias de sobrevivência e recriam assiduamente o sentido da vida. Por isso mesmo, este relatório tem sempre o objetivo de colaborar para a construção da paz, zelar por direitos e pela dignidade humana e alertar para a necessidade da concretização de uma política indigenista justa que aponte o rumo da construção de uma ética de respeito à diversidade cultural, social, econômica, política e ambiental. Conselho Indigenista missionário - Cimi 13
  • 16. Foto: Egon Heck Violência por agentes do Estado: em muitas ocorrências a PF intimida e agride comunidades indígenas em vez de protegê-las Por isso, é sempre importante esclarecer que o ponto de vista adotado é o da violência empreendida pelo poder público e por particulares contra os povos indígenas. Os estudos de violência apontaram uma modificação de paradigma nos anos de 1970, a partir da mudança dos focos de violência que passaram a emanar dos redutos civis, cujos sujeitos principais estavam localizados nos guetos empobrecidos das cidades, organizando- se em quadrilhas criminosas de alcance local, nacional e internacional. A violência temida é aquela empreendida pelo civil que rouba, seqüestra, estupra e sevicia, portanto, aquela que é praticada pelo bandido que ameaça a sociedade e o Estado. Para essa violência reclama-se a segurança pública e a proteção do Estado. Mas aqui, não falamos desse tipo de violência, mesmo que em algumas situações ela atinja o interior de comunidades indí- genas que vivem as pressões próprias do confinamento em territórios exíguos, onde as disputas por espaço e usos da territorialidade criam as bases de competições, conflitos e levam a vícios degradantes. Neste sentido, a situação do povo Guarani Kaiowá revela-se emblemática dessa situ- ação, dada a recorrência do confinamento, das ações contrárias à demarcação de territórios 14 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 17. para abrigar as comunidades, do racismo que os atinge brutalmente, do descaso e da bruta- lidade, tal como é analisada no artigo de Iara Bonin. As violências contra as pessoas revelam números preocupantes de assassinatos e tenta- tivas de assassinatos, ameaças de todo tipo, perseguições, tortura e abusos que são voltadas especialmente para as lideranças indígenas que atuam bravamente na luta por demarcação de terras. Os casos referentes aos Tupinambá, no sul da Bahia e aos Xukuru, em Pernam- buco, mostram como essas lideranças têm sido perseguidas e incriminadas ao longo de anos, levando as comunidades a viverem sob pressão física e psicológica no seu cotidiano. Nessas situações ocorre uma inversão de posição: o atacado, que seria a vítima, é transformado em réu. Em muitos casos, em diversas regiões do Brasil, aqueles que vão às delegacias de polícia denunciar ataques são presos ou saem de lá como acusados. Os casos mais dramáticos de criminalização de lideranças indígenas são tratados no artigo de Egon Heck. E uma análise detalhada dos processos judiciais e de algumas arbitrariedades é abordada por Paulo Guima- as agressões rães em seu artigo. As agressões ao patrimônio indígena continuam a evidenciar o quanto as terras indí- ao patrimônio genas são vulneráveis às ações de madeireiros, mineradores e a todos que cobiçam seus indígena recursos e riquezas. continuam a Os conflitos pela posse de terras se proliferam e se reproduzem incessantemente, tal como ocorre em Roraima, na Terra Indígena Serra da Moça, invadida por ocupantes não evidenciar o indígenas após a solução de desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Mesmo que quanto as terras o governo federal tenha cedido parte das terras da união para o estado de Roraima, os incon- indígenas são formados teimam em não reconhecer o direito dos indígenas sobre suas terras e transferem vulneráveis o conflito para uma área ainda desprotegida pela demarcação. Queimaram escola e posto de saúde que atendem a comunidade. às ações de Além dos incêndios que vitimaram diversas comunidades, além das invasões de madeireiros, grileiros, agricultores, pecuaristas e madeireiros os povos indígenas são ameaçados pelas mineradores grandes obras de infra-estrutura como as de transposição do rio São Francisco e as diversas construções de hidroelétricas. Destacam-se os conflitos gerados pela UHE Belo Monte, no rio e a todos que Xingu, cujos estudos e projetos não respeitam o direito de consulta prévia e bem informada cobiçam seus das comunidades atingidas e, muito menos, seu direito de manter a integridade de seus terri- recursos e tórios e a preservação dos recursos naturais. Os efeitos e ameaças que os grandes projetos riquezas. provocam às terras e comunidades indígenas são tratados no artigo de Saulo Feitosa. Os registros relativos às omissões do poder público contribuem para constatar o quanto ainda as comunidades indígenas se ressentem com as precariedades no atendimento à saúde e no funcionamento da educação escolar. As crianças são afetadas pela desnutrição e o índice de mortalidade na infância para a população indígena continua a ser o mais alto do Brasil. Este relatório dedica especial atenção aos povos indígenas que vivem em situação de isolamento ou de pouco contato com a sociedade nacional. São ameaçados por epidemias, por desequilíbrios ambientais, pela exploração ilegal de recursos naturais e, muito especialmente, pelos grandes projetos de infraestrutura realizados pelos governos federal e estaduais. Também são cercados pelos empreendimentos privados do agronegócio e da exploração mineral, assim como pela ação ilegal de madeireiros e garimpeiros. Um balanço dessa situação é apresentado pelos artigos de Francisco Loebens e de Lourdes Christ no capítulo IV. Entre a proteção da floresta que abriga os povos livres, exercitando autonomia na reprodução de sua vida social e o extremo confinamento, os povos indígenas enfrentam situações muito diversas, o que exigiria dos poderes constituídos muita flexibilidade para instituir uma política que contemple a variação e muito respeito pelos direitos indígenas. Esse seria o exemplo que a sociedade necessita para que se possa minimizar o racismo, manifestado em muitas situações, como se pode ver neste relatório, na extrema manifestação expressa na placa de alerta na rodovia: “Atenção - indígenas na pista a 300 metros”! u Conselho Indigenista missionário - Cimi 15
  • 18. artigo Racismoo institucional em Mato Grosso do Sul Mais uma vez estado lidera o ranking de violências contra os povos indígenas Iara Tatiana Bonin de terras. Num contexto Doutora em Educação pela UFRGS e Professora do Foi a partir das como este, a presença PPG da Universidade Luterana do Brasil estratégias de indígena é rechaçada, confinamento da e seu inegável direito a A violência sistemática praticada contra os Guarani- Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, registrada em inúmeros casos que vieram a público nos últimos anos, população indígena, iniciadas nos estas mesmas terras, hoje ocupadas por latifún- dios, é considerada uma anos 1920 e de permite afirmar que neste estado se configura um tipo contínuas invasões grande ameaça ao modelo de racismo institucional, materializado tanto em ações de desenvolvimento em nas terras destes de grupos civis, quanto em ações e omissões do poder voga. povos, em décadas público brasileiro. Na base dos conflitos, Nesse relatório de violências organizado pelo seguintes, que se portanto, está a posse da Conselho Indigenista Missionário, relativo ao ano de estabeleceram na terra. Mas as múltiplas 2009, Mato Grosso do Sul lidera, mais uma vez, o ranking região os grandes formas de violência prati- de agressões aos direitos indígenas e exibe um vergo- proprietários e cadas contra os povos nhoso quadro de assassinatos, seqüestros, lesões corpo- as empresas que indígenas, e em espe- rais, constrangimentos, ameaças várias, destruição de hoje desenvolvem cial contra os Guarani- patrimônio, abusos de poder, desassistência, omissão do monoculturas de Kaiowá, deixam evidente poder público, entre outras. O estado no qual vive uma cana, de soja e de que não se trata apenas população indígena de mais de 53 mil pessoas, recusa- de uma disputa de base outros produtos se a assegurar os direitos constitucionais destes povos econômica. Tais agres- destinados à e, mais do que isso, coloca em prática uma contínua sões têm por base uma e inegável política de extermínio, que tem como força produção de lógica racista, assentada motriz os interesses econômicos e políticos vinculados combustíveis. na crença de que os povos ao agronegócio. indígenas são signos do atraso, da inconstância, da falta de apego ao trabalho, confronto além da posse de terra do primitivismo e, assim, sua presença seria um entrave Conforme têm demonstrado diferentes estudos ao desenvolvimento regional e nacional. Por não se ajus- acadêmicos desenvolvidos no Mato Grosso do Sul, o tarem à racionalidade econômica neoliberal, por serem estado conta com um vasto território e com uma expres- distintos do ponto de vista étnico e por seguirem vivendo siva presença indígena, historicamente vinculada a estas de acordo com suas culturas e crenças, eles são conside- terras. Os Guarani-Kaiowá constituem hoje a maior etnia rados, naquele estado, um problema a ser resolvido ou no país, e também aquela que sofre mais intensamente um risco a ser controlado. os efeitos de um modelo de ocupação e de exploração das terras para o agronegócio. Foi a partir das estraté- o racismo do estado gias de confinamento da população indígena, iniciadas Michel Foucault, um importante filósofo francês que nos anos 1920 e de contínuas invasões nas terras destes discute as relações de poder e de saber que constitu- povos, em décadas seguintes, que se estabeleceram na íram a modernidade, afirma que algumas práticas, colo- região os grandes proprietários e as empresas que hoje cadas em curso para conter grupos sociais ou parcelas desenvolvem monoculturas de cana, de soja e de outros da população, podem constituir o que chama de racismo produtos destinados à produção de combustíveis. Tais de Estado. Para ele, o racismo consiste na introdução de atividades possuem amplo e irrestrito apoio governa- uma separação entre aqueles que devem viver e os que mental e somente funcionam na base da concentração devem morrer, tomando por base hierarquias biológicas 16 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 19. A expansão do agronegócio se deu em grande parte avançando sobre as terras indígenas – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi e sociais a partir das quais se estabelecem categorias de então, o fim do risco e a vitória de um modelo de ordem superioridade e inferioridade, definindo, assim, a supre- econômica que é, por conseguinte, também um modelo macia de um grupo em relação ao outro. É a cisão em de ordem social. Uma política de extermínio, numa pers- âmbito biológico que está na base de certas divisões pectiva racista, é consentida quando o objetivo é deixar que se estabelecem para assegurar privilégios de base a vida em geral mais saudável, mais pura ou mais susten- econômica, social e cultural. E nas explicações biológicas tável. Mas tudo isso implica na definição do que social- se naturalizam certas características dos sujeitos e dos mente se considera válido, saudável, puro, sustentável e grupos, em especial as supostas carências que estes decorre de jogos de força, e, portanto, do que não é “da teriam em relação aos demais. Nesta linha de raciocínio, ordem natural e progressiva das coisas”. justifica-se a suposição de que aos índios faltaria civili- dade, vontade, racionalidade, inteligência, apego ao as múltiplas formas de tirar a vida trabalho etc. Em outras palavras, é o raciocínio racista E, para Foucault, tirar a vida não se expressa apenas que torna possível descrever esses sujeitos como infe- no assassinato direto, mas também – e principalmente riores, responsabilizando- – no fato de expor à morte, de multiplicar os riscos para os pela situação de miséria No contexto estes grupos “inferiores” ou, ainda, em estratégias de e desprezo que vivenciam político e morte política, materializadas em práticas de expulsão, na atualidade. de rejeição, de confinamento, de difamação, de assédio econômico As funções do racismo moral. brasileiro e, em são, de acordo com o filó- No contexto político e econômico brasileiro e, em sofo, as de fragmentar, particular, do particular, do estado de Mato Grosso do Sul, pode-se legitimar o domínio de estado de Mato dizer que o foco é fazer viver os grandes proprietários, certos grupos e a subordi- Grosso do Sul, o grande capital e deixar morrer os povos indígenas. nação dos demais, intro- pode-se dizer A separação entre quem deve viver e quem deve ser duzir censuras e, ao mesmo que o foco é fazer expulso e rejeitado, tem por base um modelo de desen- tempo, estabelecer as bases viver os grandes volvimento autoritário e unilateral, que justifica as polí- que autorizam a morte de proprietários, o ticas estaduais e federais de incentivo, de financiamento, alguns para garantir a vida grande capital e de manutenção de estruturas que protegem os grandes de outros. A morte, física proprietários e os investidores, enquanto oferece aos deixar morrer os ou política, daqueles que povos indígenas a omissão, a negligência ou as migalhas povos indígenas. não se ajustam significaria, de uma política assistencialista fragmentada e pontual. Conselho Indigenista missionário - Cimi 17
  • 20. As violências praticadas de maneira escancarada, Do mesmo modo, quando se defende que a solução a omissão do poder público, a morosidade nos proce- para a problemática vivida pelos Guarani Kaiowá passa dimentos de demarcação das terras, tudo isso é parte prioritariamente pela intensificação de políticas assis- de uma política que promove de forma deliberada a tenciais ou, ainda, por ações que permitam integrá-los expulsão ou a morte da população indígena, ainda mais como mão-de-obra ao mercado de trabalho, também indesejada quando todos os esforços nacionais se voltam se pratica um tipo de discriminação de base cultural e para a aceleração do crescimento econômico. política. Isso porque, assumindo um caminho mais fácil, Pode-se dizer, portanto, que articulada à disputa pela tais afirmativas deixam de reconhecer a alteridade e a terra há uma intensa disputa por projetos de vida, com urgente necessidade de demarcação de terras, condição recursos e forças desiguais. De um lado estão os povos para assegurar a continuidade da vida e das formas indígenas, que têm ao seu favor prerrogativas constitu- próprias de organização dos povos indígenas. cionais, mas para quem o estado recusa o direito efetivo sobre as terras. Do outro lado o agronegócio, benefi- discriminação e segregação social ciado por incentivos oficiais, financiamentos e com forte Tomando por base os dados deste relatório, apre- aparato judicial à sua disposição, o que faz com que sentado pelo Cimi, é possível verificar uma tendência empresários como Luiz Guilherme Zancaner, proprie- de intensificação da violência contra os povos indígenas tário de três grandes usinas de álcool e açúcar, afirme em Mato Grosso do Sul, expressa tanto pela quanti- publicamente que nunca dade, quanto pela brutalidade das agressões praticadas. um governo fez tanto pelo É necessário salientar que estes dados representam agronegócio quanto o De um lado estão apenas uma amostra do que ocorre efetivamente no de Lula (entrevista publi- os povos indígenas, estado – aqui se expressa aquilo que, rompendo o cada no jornal Valor, em que têm ao seu silêncio, chega aos jornais ou a alguns canais alternativos 05/04/2010). favor prerrogativas de comunicação. O ato de deixar morrer constitucionais, Pois bem, entre os anos de 2005 e 2008, registrou-se os povos indígenas, consi- mas para quem o o assassinato de 151 indígenas somente em Mato Grosso derados, sob um prisma do Sul. Em 2009 este estado continuou sendo o mais estado recusa o racista, como improdutivos violento da federação, ano em que foram praticados 33 direito efetivo sobre e descartáveis, é praticado assassinatos de indígenas, o que corresponde a 53% das pelo Estado brasileiro de as terras. Do outro ocorrências em todo o território nacional. Além disso, muitas maneiras: através lado o agronegócio, foram registradas 9 tentativas de assassinato, 3 ameaças de ações e omissões beneficiado por de morte, 1 ameaça de várias ordens e 24 pessoas foram que os expõem à morte, incentivos oficiais, vítimas de lesões corporais dolosas. através da burocracia e da financiamentos e Os assassinatos praticados possuem agravantes como morosidade que multiplica com forte aparato a prisão arbitrária, a tortura, o uso de meios cruéis, a os riscos para a vida das judicial à sua impossibilidade de defesa das vítimas – e estas são as pessoas, expressa em situ- disposição. expressões de um racismo institucional contra os povos ações de confinamento indígenas em Mato Grosso do Sul. É impossível imagi- em terras ínfimas ou em narmos que a lista de assassinatos, que se renova a cada acampamentos provisórios, sem garantias mínimas de ano, seja um mero reflexo de fatos isolados, ou que eles segurança e de sobrevivência. sejam apenas sintomas de um desvio na conduta de Em relação aos Guarani Kaiowá, pode-se dizer que o alguns indivíduos. Esse tipo de violência está inegavel- Estado também tem decretado um tipo de morte política, mente relacionado às instituições sociais e às práticas na medida em que não controla, não fiscaliza, não coíbe contemporâneas de discriminação e segregação social a violência praticada contra eles, de forma cada vez mais protagonizadas, em grande medida, pelos próprios incisiva e contundente. Também se exprime um tipo de órgãos públicos – quando participam diretamente de morte política quando os meios de comunicação noti- ações de despejo, quando facilitam ou incitam inva- ciam de forma banal as terríveis violências vivenciadas sões de áreas indígenas, quando discriminam indígenas pelos povos indígenas, quando os responsabiliza pelas presos, que passam anos sem atenção jurídica adequada agressões sofridas ou quando simplesmente encobre e quando sequer asseguram o direito a um intérprete tais notícias com um opaco véu de silêncio. quando vão a julgamento. Vale registrar aqui que Mato 18 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 21. Grosso do Sul é o estado da federação com maior contin- distante 30 quilômetros gente de indígenas em suas penitenciárias. Os símbolos de do local do acampamento. força e de poder Já Rolindo continua desa- Milícias armadas e encapuzados utilizados – invadir parecido até hoje e, além É também no estado de Mato Grosso do Sul que se as comunidades da dor de não saber o que têm manifestado as formas mais brutais de abordagem de madrugada, ocorreu com ele, seus e de constrangimento das famílias que vivem já em uma incendiar casas, familiares ainda foram situação de vulnerabilidade e de violência, habitando destruir objetos, vítimas de discrimina- barracos à beira de rodovias. Em 2009, quatro comuni- ções, como fez o gover- matar animais, dades indígenas foram atacadas por milícias armadas e, nador do estado, André aprisionar, torturar, em cada uma dessas agressões, registraram-se variadas Puccinelli, ao levantar a formas de assédio moral e de desrespeito aos direitos assassinar, circular hipótese de que Rolindo da pessoa. com veículos seria o responsável pela Em setembro daquele ano a comunidade Laranjeira em torno dos morte de Genivaldo, e Ñanderu, dos Guarani Kaiowá, foi atacada por um grupo acampamentos para por isso estaria desapa- de homens, encapuzados e armados, que os expulsou do amedrontar seus recido. lugar, ateando fogo em seus pertences e matando, inclu- moradores – são Os símbolos de força sive, os animais de criação. Passados somente quatro manifestações claras e de poder utilizados são dias, 10 homens atacaram a comunidade Guarani Kaiowá de um anseio pelo manifestações claras de Apyka’i, que vive em um acampamento às margens da um anseio pelo exter- extermínio. BR-483. Na ocasião, um indígena de 62 anos foi baleado mínio desta população: e diversos barracos foram queimados. invadir as comunidades Em outubro, algumas famílias Guarani Kaiowá reto- de madrugada, incendiar casas, destruir objetos, matar maram uma parcela de suas terras tradicionais, ocupada animais, aprisionar, torturar, assassinar, circular com hoje pela fazenda Triunfo, no município de Paranhos. veículos em torno dos acampamentos para amedrontar Novamente um grupo de homens, armados e encapu- seus moradores. A covardia é outra marca da agressão de zados, entrou no acampamento, os agrediu violenta- que são vítimas os povos indígenas, e se manifesta espe- mente e os expulsou da área. Dois jovens professores que cialmente pelo uso de capuzes – signos de uma violência também participaram da retomada – Genivaldo Vera e “sem rosto” ou, melhor dizendo, de uma violência que Rolindo Vera – foram arrastados pelos cabelos e seqües- esconde o rosto de todos aqueles que desejam o afas- trados pelos agressores. O corpo de Genivaldo foi encon- tamento, a retirada ou a morte de sujeitos vistos como trado, alguns dias depois, com perfurações e marcas de indesejáveis por razões econômicas, políticas, culturais violência, preso a um galho de árvore, no córrego Ypoi, ou raciais. Jagunços atacaram de madrugada a aldeia Apyka’i incendiando casas e atirando contra os indígenas – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi Conselho Indigenista missionário - Cimi 19
  • 22. Além das agressões contra os Guarani Kaiowá, regis- federação, uma silenciosa e contínua prática de geno- tram-se ações violentas contra outros povos no estado, cídio, previsto na Lei nº. 2889/56, que se aplica a todos tal como ocorreu com os Terena, em novembro de 2009, aqueles que, com a intenção de destruir, no todo ou quando um grupo de fazendeiros acompanhados por em parte, grupos étnicos, raciais ou religiosos, matam seguranças particulares armados despejou, sem ordem pessoas pertencentes a estes grupos ou lhes causam judicial, uma comunidade que havia retomado parte lesões, ameaçando sua integridade física ou cultural. u da terra Buriti, no município de Sidrolândia, identifi- cada em 2001 como parte do território do povo Terena, mas até hoje mantida nas mãos de fazendeiros. Após a decisão oficial do Tribunal Regional Federal, 3ª. Região, de que os Terena poderiam permanecer naquelas terras até que a ação principal fosse julgada, os fazendeiros decidiram agir por conta própria e puderam contar, inclusive, com o apoio de cerca de 50 policiais militares que participaram da ação ilegal de despejo. Neste caso, em particular, os agentes do poder público cometeram uma dupla ilegalidade: primeiro por não assegurarem a posse e o usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais, conforme determina a Consti- tuição e, segundo, por agirem em defesa de interesses de terceiros, sem o amparo de uma determinação judi- cial para realizar a retirada dos Terena da área por eles ocupada. conivência e omissão Esse estarrecedor quadro de crueldade – protago- nizado por milícias, por setores econômicos conside- rados “imprescindíveis” ao mercado atual e por agentes públicos – agrava-se ainda mais com a desassistência praticada pelo estado nacional, que se materializa na falta de políticas adequadas em saúde, educação, etc., que acarreta, entre outras coisas, o agravamento dos casos de desnutrição e a falta de socorro aos povos indí- genas em situações de perigo, bem como a morosidade na realização de procedimentos de demarcação de pelo menos 72 tekohas reivindicados pelas comunidades indí- genas daquele estado. Vale ressaltar também os efeitos de um tipo de violência sistemática e ininterrupta, a chamada violência interna, uma contínua rede de agressões cotidianas que se acentua em situações de confinamento, de concen- tração populacional em áreas diminutas, tal como ocorre nas reservas de Dourados, Amambai e Caarapó, que juntas abrigam quase 80% da população Guarani Kaiowá do estado de Mato Grosso do Sul. Tal situação responde, em grande medida, pelos 19 suicídios ocorridos neste ano. Pode-se dizer, diante da perversidade dos atos prati- cados com participação, conivência, ou por omissão do poder público, que está em curso, naquela unidade da Tranposição do rio São Francisco – Foto: Regional Cimi Nordeste 20 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 23. artigo A Violência dos Grandes Projetos Saulo Ferreira Feitosa Secretário-Adjunto do Cimi D entre as várias violências praticadas pelo poder público contra os povos indígenas, destacamos a agressão ao patrimônio causada pelos grandes projetos como uma das mais nocivas. Sobretudo pela maneira como a mesma ocorre: de forma velada e sob um manto de aparente legalidade. Durante os dois mandatos do presidente Lula esse tipo de violência foi ampliado. Isso se deve à prioridade dada aos projetos de infraestrutura que têm como expoente o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). No final de 2009 a Funai apresentou uma listagem com 426 empreendimentos que incidem sobre terras indígenas. O maior número deles destina-se à utilização de recursos hídricos, chegando a 144, sendo 81 pequenas centrais hidrelétricas, 41 usinas hidrelétricas e 22 outras iniciativas. Em seguida vêm as linhas de distribuição e transmissão de energia elétrica que juntas somam 65, ficando em terceiro lugar a duplicação e pavimentação de rodovias, totalizando Os projetos 62 obras. Além desses, há ainda programas de ecotu- que impactam rismo, gasodutos, explo- terras indígenas ração mineral, ferrovia, continuam a ser hidrovia etc. implementados sem São projetos que qualquer consulta impactam terras indí- às comunidades genas, demarcadas ou indígenas, não, afetando a vida de passando-se inúmeros povos, inclu- ao largo das sive povos de pouco ou disposições nenhum contato. A Cons- tituição Federal de 1988 colocadas pela condiciona a sua imple- Convenção 169 mentação nestes locais da OIT. à comprovação do “rele- vante interesse público da União”, a ser definido em Lei Complementar. Mesmo não havendo ainda uma lei que o defina, os projetos continuam a ser implementados. A autorização também ocorre sem qualquer consulta às comunidades indí- Conselho Indigenista missionário - Cimi 21
  • 24. genas, passando-se ao largo das disposições colocadas Somam-se à exploração do potencial hidrelétrico a cons- nesse sentido pela Convenção 169 da Organização Inter- trução de rodovias, o avanço do agronegócio, os estragos nacional do Trabalho (OIT). causados pelas invasões garimpeiras e madeireiras, os Não por acaso os níveis de endemias e outros agravos problemas da sobreposição de unidades de conservação à saúde provocados por desequilíbrios ambientais ambiental, as práticas de biopirataria e o crescimento revelam-se excessivamente altos em comunidades indí- das pressões do setor minerário pela aprovação de uma genas, gerando riscos à sua sobrevivência. Por outro lado, legislação o mais amplamente facilitadora das atividades é possível identificar a relação existente entre o aumento de mineração naquelas terras. dos empreendimentos e o crescimento do número de Em meio a tudo isso, o órgão indigenista governa- assassinatos e outras causas de morte entre os índios, mental, Funai, que deveria atuar na defesa da integra- situação agravada pela quase paralisia do governo frente lidade dos territórios indígenas e da vida de seus habi- às demandas por demarcação de terras. tantes, tem assumido um papel de legitimador das obras Como na década de que os afetam, produzindo pareceres favoráveis à imple- 1970, os índios conti- mentação dos mesmos, apenas para atender aos inte- nuam sendo vistos como Para atender resses governamentais. Foi o que aconteceu com Belo obstáculo ao crescimento interesses Monte, dentre outros casos tão ou mais graves ainda. O econômico do país. Nesta das empresas projeto Belo Monte está implicado numa série de irregu- ótica, por que obedecer empreiteiras e laridades. O Painel de Especialistas1 apontou problemas a preceitos constitucio- beneficiárias da que vão desde “a omissão e falhas na análise de situações nais de proteção ao seu obra, mais uma e dados sociais, econômicos e culturais” pelo EIA RIMA habitat? No interesse vez, a Constituição até a não realização de audiências públicas autênticas e econômico o vale tudo brasileira e a consulta prévia às comunidades indígenas como prevê a parece ser a única norma Convenção 169 da OIT. O EIA RIMA faz referência a alguns Convenção 169 da a ser obedecida. Um povos indígenas, a exemplo dos Juruna do Paquiçamba, OIT estão sendo exemplo claro é a obsti- Arara da Volta Grande e os Juruna do KM 17. Mas deixou nação do presidente da violadas, assim fora outros, como os Xipaia e Kuruaya. Além disto, o EIA República em relação à como o foram RIMA corrobora a existência de índios em situação de construção da Hidrelé- para viabilizar isolamento na região (os povos isolados), mas se omite trica de Belo Monte no a transposição quanto aos impactos da obra sobre estes povos. Por essa estado do Pará. Embora das águas do Rio razão, o empreendimento poderá ser responsável pela haja estudos que ques- São Francisco, morte de pessoas ou povos isolados, podendo o Estado tionem a sua capacidade o complexo brasileiro vir a ser denunciado por crime de genocídio. real de produzir energia e hidrelétrico do Mesmo assim a Funai se posicionou favoravelmente ao ao mesmo tempo compro- projeto. Madeira, a UHE do vando o grave dano a ser No dia 14 de abril de 2010, em discurso proferido Estreito etc. causado ao meio ambiente, no Congresso Brasileiro do Aço, na cidade de São Paulo, aos povos indígenas e às o presidente Lula afirmou que “ninguém tem mais populações regionais, o governo insiste em erguer mais preocupação para cuidar da Amazônia e dos nossos índios um monumento à insanidade, assim como o é a Hidrelé- do que nós”. Apesar de parciais, os dados apresentados trica de Balbina, construída no estado do Amazonas. Para neste texto nos asseguram a legitimidade necessária atender interesses das empresas empreiteiras e benefi- para no mínimo suspeitarmos dessa afirmativa do Sr. ciárias da obra, mais uma vez, a Constituição brasileira Presidente. u e a Convenção 169 da OIT estão sendo violadas, assim como o foram para viabilizar a transposição das águas do rio São Francisco, o complexo hidrelétrico do Madeira, a UHE do Estreito etc. Atualmente há 83 hidrelétricas em operação na região amazônica e mais 247 barragens estão planejadas para serem construídas nas próximas duas décadas. Certa- 1 grupo formado por especialistas de diversas instituições de ensino e pesquisa que realizaram uma análise conjunta sobre o mente muitas outras terras indígenas serão atingidas. EIA RImA de Belo monte apontando graves falhas e omissões. 22 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 25. artigo CRIMINalIzaçãO DOS POvOS INDíGENaS: A nova face do velho colonialismo Egon D. Heck econômicos e políticos dos Estados Unidos e das grandes Regional Cimi MS corporações multinacionais. Bartomeu Meliá, renomado antropólogo, profundo E xpulsar é preciso. Matar é preciso. Demonizar é preciso. Criminalizar preciso é. Essa é a velha e nova estratégia bélica do neocolonialismo com relação aos conhecedor do povo Guarani, em recente conferência em Dourados (MS), afirmava que “A coloneidade ou colonialismo atravessa os cinco séculos da presença do povos indígenas do Brasil. Esse processo de criminali- europeu nesse continente encobrindo os povos nativos, zação não acontece apenas com os povos indígenas, mas suas culturas, sua organização social e resistência, de uma maneira mais ampla com os movimentos sociais. promovendo a destruição dos mesmos e implantando No campo, por exemplo, a criminalização do Movimento um processo de desnaturalização do ambiente em dos Sem Terra é uma evidência de uma ampla e ideoló- que vivem as populações indígenas. Essa coloneidade gica política de saque dos recursos naturais e negação continua se manifestando nas políticas e práticas com de direitos a setores sociais e étnicos, que lutam pelo relação aos povos indígenas”. Esse é o processo de mais reconhecimento de conquistas nas leis, sejam elas as de 500 anos de colonização, que perdura até hoje. A constituições nacionais ou legislação internacional. Os ideologia da coloneidade é a praga que nega o direito à povos indígenas continuam sendo considerados, por vida e à alteridade nesse continente. Uma de suas faces vários Estados Nacionais nas Américas, como ingênuos e estratégias mais recentes é a criminalização das lide- e perigosos contingentes manipuláveis pelos interesses ranças indígenas. Conselho Indigenista missionário - Cimi 23
  • 26. A Via Campesina, em recente documento, assim mente se opuseram e se opõem ao nosso projeto de vida. define os objetivos da criminalização dos movimentos Anunciamos nossa solidariedade ao povo Tupinambá, sociais1: “criar condições legais e, se possível, legítimas que no momento está com seu cacique preso injusta- perante a sociedade para: mente. Saímos renovados espiritual e politicamente a) impedir que a classe trabalhadora tenha conquistas para caminhar na construção de um mundo melhor para econômicas e políticas; todos e todas”.2 b) restringir, diminuir ou dificultar o acesso às polí- ticas públicas; Guarani kaiowá c) isolar e desmoralizar os movimentos sociais junto criminalização e genocídio à sociedade; Na questão Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, a d) e, por fim, criar as condições legais para a repressão criminalização de comunidades e lideranças desse povo física aos movimentos sociais”. é evidente e gritante. Ela se reflete em números e casos No caso dos povos indígenas a clara intenção final das emblemáticos, onde se estabelece uma intrincada rede forças anti-indígenas é impedir a demarcação de suas de racismo e conivência dos poderes, especialmente do terras, e o consequente objetivo da criminalização é criar judiciário. O caso mais reve- as condições legais e morais para obstruir o usufruto a intenção lador desse processo crimi- exclusivo desses povos sobre os recursos naturais nelas nalizante é o de Passo Piraju, final das forças existentes. no município de Dourados. anti-indígenas Ali simplesmente se crimi- Xukuru é impedir a nalizou praticamente toda a criminalização massiva demarcação comunidade e em especial Vejamos algumas das principais situações de crimina- das terras. O as lideranças, no intuito de lização de comunidades e lideranças indígenas durante objetivo da desmantelar e expulsar o o ano de 2009. Um dos estados que se sobressai pela criminalização.é grupo de uma ínfima parte amplitude da criminalização é Pernambuco. E dentre criar as condições de seu território tradicional os povos indígenas deste estado é o povo Xukuru que legais para retomado. Como fato mais mais duramente tem sido atingido. Foram 35 lideranças obstruir o usufruto recente podemos citar a criminalizadas. Elas foram indiciadas e processadas por armação feita por policiais exclusivo desses uma variedade de crimes em decorrência de uma mani- que levou à prisão cinco povos sobre os festação que surgiu depois da tentativa de assassinato membros desta comuni- do cacique Marcos Xukuru no ano de 2003, na ocasião recursos naturais dade, em fevereiro de 2009. foram mortos dois jovens que o acompanhavam. Porém, existentes. A apreensão e a busca das mesmo pesando sobre eles o sofrimento contínuo dessa casas aconteceram de forma tensão e ameaça permanente, o povo Xukuru não se violenta e truculenta. deixa abalar, pelo contrário, demonstra grande dispo- No caso de Apyka’i, próximo a Dourados, onde foram sição e força para reverter esse quadro. No documento queimados barracos da comunidade à beira da estrada final da sua última Assembléia os Xukuru assim explici- e feridas pessoas que ali estavam, o procurador do taram essa decisão: “Mas, mesmo com toda essa força, Ministério Público Federal em Dourados, Marco Antonio mobilização e vontade de viver em paz em nosso terri- Delfino, definiu o covarde ataque como tentativa de tório, nossas lideranças continuam sendo criminalizadas. genocídio: “Um grupo armado teve intenção explícita Nossos parentes Rinaldo Feitoza e Edmilson Guimarães de atacar outro grupo por suas características étnicas, continuam presos injustamente e nosso Cacique e lide- porque são indígenas”.3 Nos relatórios da Funai e do ranças sendo perseguidos. Por fim, saímos mais uma vez MPF, funcionários da usina São Fernando e da empresa fortalecidos da nossa assembléia para continuar lutando de segurança (Gaspem) são apontados como responsá- junto às lideranças, firmes contra as forças que historica- veis pelo ataque. 1 A ofensiva da direita para criminalizar os movimentos sociais no Brasil, Via Campesina Brasil, janeiro 2010 2 Documento final da Assembléia Xukuru, Aldeia Cajueiro, Pernambuco, 17 a 20 de maio de 2010 3 Amnesty Internacional 30/09/2009; Informe Cimi 24/09/2009; Repórter Brasil 1/10/2009 24 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 27. Outro exemplo é o de Kurusu Ambá. As lideranças estão sendo criminalizadas e uma delas teve que anexo 1 deixar sua comunidade, buscando segurança. Neste Lideranças indígenas em processo de crimi- local houve prisões de várias lideranças desde 2007, nalização no ano de 2009 quando quatro delas foram condenadas a 17 anos e meio de reclusão. Foi um processo relâmpago, que Nome Povo desde o inquérito até a condenação levou apenas sete meses, quando casos envolvendo assassinatos SANTA CATARINA – 03 representantes indígenas de lideranças indígenas levam dezenas de anos para Cacique Jeremias Pattã serem concluídos ou simplesmente prescrevem, Vaihecu Ndilli Xokleng como é o caso do assassinato de Marçal de Souza Vêi-Tcha Têie Winklr (conhecida Tupã’i. Um indicador dessa agilidade de condenação também como Suzana) indígena são os mais de 200 índios nos presídios do cone sul do Mato Grosso do Sul, o maior número de PERNAMBUCO – 35 representantes indígenas indígenas encarcerados num estado no país. Antônio Gilvam Macena Antônio Luciano Albuquerque Melo Tupinambá Antônio Luiz Lopes de Melo engenhosa estratégia persecutória Antônio Monteiro Leite A região sul da Bahia é um lugar onde se pode Armando Bezerra dos Santos constatar muito facilmente o requinte dos instru- Cássio Gerônimo do Nascimento Silva mentos utilizados para intensificar a estratégia de Cristóvão Ferreira Leite criminalização das lutas indígenas. Numa enge- Débora Macena dos Santos nhosa estratégia persecutória, todas as ações legí- Djalma Bezerra dos Santos timas empreendidas pelas comunidades indígenas Francisco de Assis Jorge de Melo para defender seus territórios tradicionais têm Geovane Macena sido convertidas em ações criminosas. A Polícia Gerson Albuquerque de Melo Federal, através da produção de inúmeros inqué- João Jorge de Melo ritos para apurar “supostos crimes” praticados José Carlos da Silva Batista pelos índios, tem funcionado como agente prin- José Edson Albuquerque Melo cipal nesse processo. Em alguns inquéritos chega-se José Gonsaga Pereira ao absurdo de caracterizar as comunidades como José Jorge de Melo quadrilhas, transformando os caciques em “chefes” José Osinaldo Gonçalves Leite Júnior Xukuru das mesmas. Como conseqüência, tanto a Justiça José Robenilson Lopes Federal como a Justiça Estadual acabam expedindo José Romero Lopes de Melo vários mandados de prisão contra as principais lide- José Romero Macena ranças indígenas que estão à frente das lutas em José Sérgio Lopes da Silva defesa de suas terras. O exemplo mais claro é o Juliana Monteiro que vem ocorrendo com a comunidade Tupinambá Luiz Carlos de Araújo da Serra do Padeiro, onde o cacique Rosival e mais Marcos Luidson de Araújo quatro irmãos seus estão sendo processados, sendo Maria das Montanhas Macena o primeiro denunciado, dentre outros crimes, por Maria Romelita Macena “formação de quadrilha”. Paulo Ferreira Leite Contudo, independentemente da existência ou Paulo Romero Monteiro não de mandados de prisão, a Polícia Federal tem Raimundo Bezerra dos Santos agido de forma violenta em várias situações, como Rinaldo Feitoza Vieira em um dos casos de lesões corporais descritos neste Ronaldo Jorge de Melo relatório, ocorrido em junho de 2009, onde 5 indí- Uilho Lopes da Silva genas foram capturados e agredidos, inclusive com Welligton Albuquerque Melo choques elétricos na região dorsal e genital. u Wilton Lopes da Silva Conselho Indigenista missionário - Cimi 25
  • 28. artigo Repercussões da realidade agressiva contra os Povos Indígenas no Poder Judiciário Paulo Machado Guimarães conformam um conjunto Advogado e Assessor Jurídico do Cimi Os conflitos de fatores que exige inter- possessórios, que venção do poder público A s informações sistematizadas pelo Cimi em seu novo se sucedem, porque de forma sistemática e Relatório de Violência contra os Povos Indígenas naturalmente as articulada. E é exatamente referente a 2009, indicam que o cenário nacional de comunidades esta ação do Estado, de agressões aos povos indígenas permanece inalterado. indígenas não têm forma sistemática e arti- Em cerca de um terço das unidades da federação para onde ir, só culada que ainda se revela são registrados casos de abuso de poder e ameaças terão fim quando precária. de morte. Mas realmente o que continua chamando a As conseqüências jurí- estas comunidades atenção consiste no impressionante percentual de homi- dicas mais imediatas desta estiverem adequada situação traduzem-se, em cídios envolvendo membros de comunidades indígenas, e condignamente relação às agressões em sua estarrecedora maioria entre os Guarani Kaiowá, no estado do Mato Grosso do Sul. Dos 60 casos regis- instaladas contra a pessoa e o pa- trados, 33 (55%) referem-se a comunidades indígenas nas terras que trimônio, na forma de in- neste estado. As 27 ocorrências restantes (45%) distri- tradicionalmente quéritos policiais e ações buem-se em 13 unidades da federação, sendo que na ocupam e sob penais e em ações posses- Bahia foram registrados 7 homicídios, 6 destes vitimando proteção que a sórias ou contra a demar- indígenas do Povo Pataxó, na região de Coroa Vermelha. Constituição impõe cação de terras indígenas. Dos 18 casos de abuso de poder, 1 dos casos envolve 5 à União. Neste contexto, no que Tupinambá, presos e gravemente agredidos por ação de se refere aos homicídios agentes da Polícia Federal, causando-lhes significativas no Mato Grosso do Sul, lesões corporais, típicas da prática de tortura. importa reiterar a observação já feita por muitos, no Estes três povos indígenas - Guarani Kaiowá, Pataxó sentido de que não será processando e condenando in- e Tupinambá - localizados em estados geograficamente dígenas pela agressão e homicídio de outros índios, que distantes entre si, se aproximam por uma singularidade se conseguirá enfrentar a causa destas mazelas, reflexo macabra. No caso dos Guarani Kaiowá e Pataxó estão da desorganização sociocultural destas comunidades. submetidas a forte e intensa influência de comunidades As circunstâncias indicadas em relação a cada caso de urbanas não-índias. Já as terras que os três povos tradi- homicídio envolvendo os 33 Guarani Kaiowá revelam cionalmente ocupam ainda aguardam serem administra- nitidamente a gravidade dos desajustes socioculturais a tivamente demarcadas. Apesar da Terra Indígena Coroa que as comunidades das vítimas estão submetidas. Em Vermelha já estar demarcada e registrada em cartório, os um grande número das ocorrências o motivo da violên- indígenas aguardam a revisão de seus limites, por ter sido cia é o uso de bebida alcoólica, que potencializa desen- demarcada com redução da área. Também está invadida tendimentos acarretando agressões com a utilização de por empreendimentos imobiliários, em razão do grande facas. Mas nestas 33 ocorrências, o caso do professor apelo turístico da região. Tanto os Guarani Kaiowá, como Genivaldo Vera merece destaque. Junto com seu primo, os Pataxó e os Tupinambá litigam ainda contra fortes o igualmente professor Rolindo Vera, ambos Guarani interesses econômicos e políticos regionais. Kaiowá, integrava a liderança do grupo de 25 Guarani Estes indicadores, somados às relacionadas agres- Kaiowá que haviam retomado a posse do tekohá Ypo,i sões ao patrimônio, que revelam os conflitos pela posse para sua comunidade. Após confronto com seguranças da terra e preservação dos recursos naturais nelas exis- de uma fazenda, no dia 29 de outubro 2009 desapare- tentes, somados às omissões do poder público, seja ceram. O corpo do professor Genivaldo foi encontrado na área educacional, seja no atendimento à saúde, boiando num córrego localizado na fronteira com o Para- 26 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009
  • 29. Desde 1983 os Pataxó Hã Hã Hãe aguardam a decisão do STF sobre a posse de suas terras tradicionais – Foto: Clarissa Tavares/Arquivo Cimi guai, próximo ao local do confronto. O corpo do profes- O círculo vicioso que os pretensos proprietários das sor Rolindo ainda se encontra desaparecido. Os indícios terras indígenas, com apoio político de parlamentares indicam a prática de homicídio em razão da disputa pela e governantes daquela unidade da federação desenca- posse da terra tradicionalmente ocupada por sua co- deiam, visa adiar a solução do problema, que nos termos munidade. Este episódio, somado aos assassinatos, em constitucionais passa pela demarcação das terras que 2008, de lideranças Guarani Kaiowá em Kurussú Ambá, tradicionalmente ocupam. Terras às quais os Guarani como os conflitos verificados no Passo Piraju, em 2007, Kaiowá estão impossibilitados de exercer a posse perma- se situam no contexto do impressionantemente grave nente e o usufruto exclusivo, por estarem invadidas. cenário de violências e discriminações a que os Guarani Os conflitos possessórios, que se sucedem, porque Kaiowá estão submetidos em razão da disputa pela posse naturalmente as comunidades indígenas não têm para e a demarcação das terras tradicionais. onde ir, só terão fim quando estas comunidades esti- Perseguir e desqualificar publicamente lideranças verem adequada e condignamente instaladas nas terras indígenas por meio de veículos de comunicação, bem que tradicionalmente ocupam e sob proteção que a como indiciá-los pela prática de delitos, ou processá- Constituição impõe à União. los criminalmente e condená-los a penas de reclusão Tanto nos casos relacionados diretamente à disputa em presídios de Mato Grosso do Sul, serve apenas para pela posse da terra, como nos casos de violência decor- agravar o problema a que estão submetidos e constituir rente de uso de drogas ou bebidas alcoólicas, impres- a maior população indígena encarcerada do país. Essa siona que a origem dos problemas está na limitação dos situação consolida uma deturpada imagem social sobre espaços territoriais em que as comunidades Guarani a população indígena, como sendo de desocupados, Kaiowá estão vivendo. Daí a inevitável conclusão de improdutivos e criminosos. que somente com a garantia da integridade dos espaços O contexto de violações e agressões a que os Guarani territoriais a que têm direito constitucional será possível Kaiowá estão submetidos, legitima a percepção de que descortinar um novo cenário de perspectivas, que, junto estão envolvidos em um conjunto de fatores caracteriza- com uma série de outras ações governamentais e indí- dores da prática de genocídio. genas, permitam aos jovens indígenas e suas famílias Conselho Indigenista missionário - Cimi 27
  • 30. se reencontrar com suas histórias e culturas. Ou seja, discriminação e as agressões às quais os Guarani Kaiowá é necessário, em primeiro lugar, que lhes sejam asse- estão sendo vítimas encontra nos Tupinambá dramática guradas as terras que tradicionalmente ocupam, de semelhança, a exemplo do que passaram os Macuxi, os forma que suas comunidades possam se reestruturar, de Wapixana, os Taurepang, os Ingarikó e os Patamona, acordo com suas formas próprias de organização social, nos seus esforços para conseguir a demarcação e a de acordo com seus usos, costumes, línguas, crenças desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e às e tradições, nos termos reconhecidos pelo art. 231 da perseguições de que são vítimas mais de 35 lideranças Constituição Federal. Para tanto, impõe-se superar, espe- do povo Xukuru, no estado de Pernambuco, condenadas cialmente no Poder Judiciário, as objeções e as impugna- pela Justiça Federal desse estado, processo aguardando ções de interesses privados e de setores políticos. apreciação do recurso interposto no Tribunal Regional Não se nega, naturalmente o direito de quem quer Federal da 5ª Região. que seja em questionar em juízo alegados direitos seus. A perspectiva de que as terras tradicionalmente Mas aos representantes do Poder Judiciário, como aos ocupadas pelos Tupinambá sejam demarcadas tem membros do Ministério Público estaduais e federal se projetado sobre suas comunidades e em especial sobre coloca o desafio no sentido de situar estes conflitos suas lideranças intensas reações e manifestações de inti- judicializados no contexto mais amplo da necessidade midação por parte de interesses econômicos e políticos urgente dos espaços territoriais virem a ser garantidos, locais. por serem indispensáveis à vivência e à convivência Os pretensos proprietários das terras tradicional- destas comunidades como expressões de povos étnica e mente ocupadas pelo povo Tupinambá têm desenvol- culturalmente distintos entre si e da sociedade brasileira vido a tática de registrar ocorrências na Polícia Federal, que os envolve. por supostas práticas delituosas praticadas pelas lide- Trata-se de tema imprescindível à conformação de ranças Tupinambá, em especial as da Serra do Padeiro. fundamentos e objetivos da República Federativa do Destas ocorrências, a maioria registrada na Polícia Brasil, inscritos no art. 1º, II e III e no art. 3º da Consti- Federal de Ilhéus, resulta a instauração de Inquéritos tuição Federal. Policiais. Em sua grande maioria, tratam-se de reclama- É nesta mesma perspectiva de desafio da República ções de supostos proprietários e posseiros de terras que brasileira e conseqüentemente de todo seu povo, que a se dizem ameaçados ou turbados na posse das terras Foto: Clarissa Tavares/Arquivo Cimi Os Guarani Kaiowá em frente ao STF exigem agilidade nos processos contra as demarcações que se alastram no judiciário 28 Violência contra os povos indígenas no Brasil - 2009